A poesia anos 80 de Miguel Almeida
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 03 de março de 1985
A poesia é necessária. Uma verdade que se repete a cada vez que mergulhamos numa leitura de um bom autor - famoso ou jovem - que procura sua verdade através das palavras que monta/cria/sensibiliza o leitor. Sente-se isto perante vários livros que, lançados mais ou menos recentemente, nos aproximam de poetas com muita sensibilidade.
Comecemos com um poeta jovem, rebelde e criativo: Miguel de Almeida. Um dos mais brilhantes e inquietos repórteres da "Folha de São Paulo", atualíssimo em vários campos, muitos títulos publicados, lançou no ano passado seu novo livro - "Blue Paixão" (Global, 72 páginas).
Com ilustrações de Ivald Granato - também um jovem artista de vanguarda, autor de projetos plásticos notáveis - o livro de Miguel de Almeida, incluído na coleção Navio Pirata, tem uma apresentação primorosa. Um trabalho criativo, com uso das cores azul e vermelha, numa interferência/participação em cada página. Das citações de abertura - Kierkgaard e William Faulkner - a original idéia de datar e localizar o dia e o local em que nasceu cada poema, Miguel de Almeida traz uma obra extremamente pessoal, na qual expele seus demônios e seus amores, numa linguagem tão personalizada que, se a princípio, parece huis-clos - transcende numa empatia emocionante.
Pavor a canção truncada/Eu não sem nada de amor.
Mulher qualquer no resto/pássaros ladrilhos na noite.
Pela sua própria juventude, a poesia de Miguel de Almeida - assim como seus (brilhantes) textos jornalísticos - são escritos de forma elétrica/eletrizantes, faiscantes num vídeo-texto em que, entretanto, o social também comparece, como ao dizer.
Estive nas ruas do centro cidade/lá mulheres morrem de amores
E não dizem nada/Olhos apodrecem nas ferragens
Migalhas lanham roupas dos insetos
Nos vôos das pestes soam epidemias.
Francisco Alvim, autor de "Passatempo" (Brasiliense), num belo review de "Blue Paixão", iniciou seu comentário (FSP, 20/5/84), indagando:
- "Na época da semiótica, do intertexto e da metalinguagem, da troca entre casais, da transexualidade e da sauna para executivos, é possível ainda escrever um poema de amor? Ou mesmo, num impulso de ambição desmedida, compor todo um livro de poemas amorosos?"
E, para Francisco Alvim, Miguel de Almeida, com este seu "Blue Paixão", "mete a colher no caldo". Com precisão, o resenhador da "Folha" lembrou que há toda uma linha lírica amorosa de Miguel de Almeida "o desejo de escapulir do objeto amado, seja por meio de uma linguagem tornada anônima, com as circunstâncias adquirindo voz, como em Vera Pedrosa, em Ana Cirstina César; seja ainda por meio de um realismo impiedoso e debochado, que põe a nu o lugar comum e a falsidade da prática amorosa convencional, como em Cacaso, Roberto Schwartz, Charles, Chacal ou Luís Olavo Fontes".
Definindo a poesia de Miguel como "fortemente imagética", Alvim salientou que "Blue Paixão" tem como o melhor na "percepção amorosa, que se faz voluntariamente difusa para escapar da boçalidade ambiente".
- "É a maneira da qual o poeta se serve para recuperar, em plano diverso, o objeto e os espaços que o amor lidera, cidade só janelas. O que não quer dizer que a poesia do autor seja idealizante ou escapista. Pelo contrário, suas raízes estão fixadas no cotidiano e no duro chão das cidades".
Um grande livro em apenas 70 páginas, com imagens/palavras de uma poesia anos 80, tão bem sintetizado num poema de novembro de 83:
Amor comum/morte de paixão que não dá canção
Amor de mármore nas esquinas/em flipers de luzes e tons esguelhados
Meu bem dançando só som dos automóveis.
Enviar novo comentário