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Aramis

A poesia de Bandeira ganha a melhor música com Olívia

O centenário de nascimento de Manuel Bandeira (Recife, 1886 - Rio de Janeiro, 1968) teve duas comemorações retardadas para 1987, mas assim mesmo com a maior validade: as edições do álbum "Estrela Da Vida Inteira", de Olívia Hime (Continental, janeiro/87) e o belíssimo livro "Bandeira Da Vida Inteira" (1), uma criação editorial de Salvador Monteiro e Leonel Kaz, das Edições Alumbramento - com financiamento da IBM Brasil, mas também à venda em algumas livrarias da categoria (Cz$ 650,00 o exemplar). Entusiasmada com a repercussão que o seu projeto lítero-fonográfico anterior, "A Música Em Pessoa" (Sigla/Som Livre, 1985/86) havia alcançado, Olívia Hime esperava que a idéia de um disco com a musicalização de poemas de um dos maiores nomes de nossa literatura, Manuel Bandeira, também tivesse boa acolhida junto a gravadora do grupo Globo. Quem engano! Preocupada em otimizar ao máximo seus lucros, a Sigla voltou a ser apenas uma empresa de marketing fonográfico - editando exclusivamente álbuns-montagem e trilhas sonoras de suas telenovelas, de vendagem garantida, e dispensou o seu elenco, incluindo a própria Olívia Hime - junto com o marido, o talentoso pianista e compositor Francis Hime. A chamada fase de prestígio, quando Marilda Pedroso chegou a realizar ótimas produções na Sigla (2) está encerrada e, assim, não restou a Olívia outra opção do que partir para uma produção independente. Felizmente prestígio não lhe falta, tem uma sólida situação financeira e, com capricho e competência arregimentou entre seus muitos amigos alguns nomes nacionais para musicarem poemas de Bandeira, previamente indicados por ela. Só depois que a fita ficou pronta a Continental, agora em fase de reestruturação artística, se interessou pelo projeto, lançando o disco em janeiro. E não poderia fazer melhor: seguramente, este álbum estará entre os melhores do ano - e é um lançamento para permanecer em catálogo. MUSICAL BANDEIRA - Como escreveu Sérgio Augusto (O Estado do Paraná, 04/02/87), "nenhum outro poeta pós-modernismo teve mais versos musicados do que Manuel Bandeira. Ao todo, 48 poemas, sem contar os 'inéditos' selecionados para o disco de Olívia Hime". No levantamento feito por SA, "Cantiga" já inspirou quatro músicos; "Azulão", "Berimbau" e "Modinha", três (3); "Debussy", "Dona Janaína", "Impossível Carinho", "Madrigal", "Canção Do Mar", "Pousa A Mão Na Minha Testa", "O Anjo Da Guarda" e "Irene No Céu", dois. Bandeira sempre foi ligado a música (tocava piano, violão) e, como lembrou ainda Sérgio Augusto, adorava certas alterações ("Capibaribe, Capibaribe") que, dizia, funcionavam em seus versos como bemóis e sustenidos. Compôs uma "Sonata Poética", com alegro, adágio, "acherzo" e rondó que acabou no lixo antes de chegar aos tímpanos mais íntimos. Chegou até a tentar uma parceria com Ary Barroso, para quem escreveu (1955) a letra do samba "Portugal, Meu Avozinho" - mesmo poema que, agora, o baiano Moraes Moreira deu um tratamento de funk. Em seu projeto para homenagear Bandeira, Olívia procurou um lado bem intimista ("Eu queria mostrar Bandeira de uma perspectiva diferente, do ponto de vista de pessoas que certamente seriam seus amigos"). Intérprete em 12 das treze faixas, Olívia também atreveu-se a musicar um poema de Bandeira, justamente um dos mais famosos e que dá título a um de seus livros ("Estrela Da Vida Inteira"). A melhor faixa ficou por conta de Antônio Carlos Jobim, que foi o mais próximo de se tornar amigo de Bandeira, esmerando-se em fazer de "Trem de Ferro" (admitidamente com parentesco polifônico, com "Trenzinho Caipira", de Villa-Lobos) uma pequena obra-prima, valorizada ainda mais pela interpretação e arranjos de Tom e as belíssimas vozes e instrumentistas que o tem acompanhado em seus (pouquíssimos) shows no Brasil e Exterior. Originalmente, Olívia havia pensado em sugerir a Tom que musicasse "O Impossível Carinho", que acabou ficando com Ivan Lins - e que fez um trabalho impecável também, verdadeira peça de ourives sentimental num poema tão curto e tão grandioso em sua beleza. Cada um dos compositores convidados por Olívia a participar do projeto esmerou-se ao máximo no trabalho, o que resultou em trabalhos perfeitos. Por exemplo, Dorival Caymmi volta a sua grandiosidade dos anos 30/40 (quando produziu as mais belas canções do mar) ao musicar "Balada Do Rei Das Sereias". Seu filho Dori, musicou "Versos Escritos N'Água". Não foi fácil, confessa Olívia, coordenar esta produção - pois os convidados estavam sempre viajando. João Bosco, por exemplo, pensando para musicar "Berimbau" acabou não podendo fazer o trabalho. Mas teve uma substituta a altura: a ótima Joyce, que inclusive participou da gravação. Toninho Horta, mesmo viajando bastante, encontrou tempo e musicou "Baladilha Arcaica". Como Radamés Gnatalli já havia musicado há anos "Temas E Voltas", o mestre não faltou no disco, enquanto Wagner Tiso cuidou de "Belo Belo" e Milton Nascimento de "Testamento". Como Francis Hime estava ocupado em terminar uma sinfonia para estrear com a Sinfônica de Campinas, não pode cuidar dos arranjos - desenvolvidos com a maior competência por Gilson Peranzzetta e Dori Caymmi. Mas Francis ao menos musicou "Desencanto". Cada faixa deste álbum é uma jóia. Um álbum histórico e inesquecível, que confirma como uma cantora competente, profissionalmente irrepreensível pode valorizar um trabalho e, ao chegar ao seu quinto álbum, realiza um disco marcante e didático, pois como ela própria diz, "a música não substitui a leitura, mas a estimula". BANDEIRA SEGUNDO EDUARDO & WAGNER - Se "Estrela Da Vida Inteira" teve uma justa promoção nacional - pela sua importância cultural - há cinco anos passados, dois talentosos compositores, cantores e violonistas já haviam também homenageado a Bandeira, sem qualquer repercussão. Num excelente trabalho independente, Eduardo & Wagner (de quem não temos as menores referências) gravaram na Sala Cecília Meireles, RJ, entre os dias 1º, 3 e 7 de dezembro de 1982, com trabalho técnico de Franck Justo Acker, um punhado de canções nas quais musicaram não só três poemas de Bandeira, como um de Carlos Drummond de Andrade. Trabalho independente, sem qualquer registro na época (alguns exemplares ainda se encontram na Collector's, na Avenida Visconde de Pirajá, Ipanema, RJ, a Cz$ 60,00 a unidade), Eduardo e Wagner mostraram neste álbum um extraordinário bom gosto e competência profissional. Por exemplo, convocaram o coro do Seminário a Música Pró-Arte, para amparar ao arranjo de "Gosto De Ti Com Desgosto" ("letra amarga para modinha"), musicado por Eduardo e Wagner. De Manuel Bandeira, escolheram "A Silhueta", "Solau Do Desamado" (trabalho feito em 1979) e "Valsa Romântica" (musicado em 1981), definido como "letra para uma valsa romântica", enriquecido com o coro da Universidade Santa Úrsula. Será que em seu levantamento das poesias de Bandeira que ganharam música, Sérgio Augusto considerou este disco tão esquecido? E um disco belíssimo, onde Eduardo (Camerietzki) e Wagner (Campos) mostram também sua maestria de violonistas no "Choro nº 2", composição de Eduardo feita em 1980 e no "Tango Choro", da dupla (também de 1980). Letristas em outras faixas ("Casa Suspeita", "Acorda Donzela", "Cena Curta" e "Modinha Antiga"), este duo mereceria ter recebido mais atenção quando saiu o disco. Um álbum, aliás, com capa criada por Oscar Niemeyer. Infelizmente, ficaram esquecidos - como tantos grandes talentos. NOTAS (1) "Bandeira Da Vida Inteira", além de uma seleção de textos do autor de "Estrela Da Manhã", traz ainda um disco compacto, onde o próprio Bandeira lê seus poemas (aproveitamento de um registro feito originalmente para a Festa, que o editou em compacto duplo nos anos 60). (2) A Sigla editou antologias de Thiago de Mello e Ferreira Gullar e João Cabral de Mello Neto dizendo seus poemas, além de produções especiais como "Jorge Amado-Guia das ruas e dos mistérios da cidade de Salvador da Bahia" (1980) o "Os 4 Mineiros - Fernando Sabino / Hélio Pellegrino / Otto Lara Rezende / Paulo Mendes Campos" (1981). (3) Jaime Ovalle, poeta, diplomata, grande boêmio, figura das mais queridas da literatura brasileira, fez a música para "Azulão", uma das mais conhecidas do repertório de Maria Lúcia Godoy e outras cantoras. LEGENDA FOTO - Olívia Hime: depois de Pessoa, musicando os poemas de Bandeira. LEGENDA ILUSTRAÇÃO - Manuel Bandeira: musical e belo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
7
22/03/1987

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