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Aramis

Quem diria, da glória artística aos sussurros do sexo explícito!

Em menos de uma semana, Curitiba perdeu dois espaços teoricamente destinados a atividades culturais: os cines glória e o Teatro do Sesi. Ambos destruídos por incêndios que, em poucas horas, reduziram a cinzas, áreas em que aconteceram momentos de arte, lazer e entretenimento - seja em imagens projetadas nas telas ou no grande palco do Teatro da Federação da Indústrias do Estado do Paraná - que justamente por ter sido projetado para uma função polivalente coadjuvada a cancha de esportes se constituía na maior área interna cênica do Estado. Mais do que os prejuízos financeiros, fala-se em perda de endereços que deveriam narrar a nossa vida cultural. Infelizmente, tanto os cines Glória como o Teatro do Sesi, há anos estavam bastante desviados do que se possa chamar de produção artística. (*) O cine Glória teve um passado realmente artístico ( ver texto nesta página) , pois em sua primeira fase, quando foi inaugurado há quase 30 anos, se constituía numa das salas mais luxuosas da antiga Empresa Cinematográfica Sul, que se associou à proprietária do imóvel - a advogada Rosy Pinheiro Lima e fez uma sala de primeira categoria. Presidida por Paulo Sá Pinto (1912-1991), que entre o final dos anos 40 até a primeira metade da década de 60 dominava a cinematografia em Curitiba, a Sul dez o Glória surgir de uma necessidade de a empresa expandir-se com novas salas. Possuindo os cines Avenida, Rivoli e Marabá (hoje Bristol) , a empresa tinha perdido o antigo Ritz (quando as obras de alargamento da Rua 15 de Novembro levaram a demolição do antigo prédio) e o histórico América na rua Voluntários da Pátria (ao lado de outro cinema tradicional, o poeira Curitiba). A Orcopa, então dirigida por Ismail Macedo e principal concorrente da Sul, além do Ópera (inaugurado em 1943) e Arlequim, expandia-se com o São João e o luxuoso Vitória (que viria inaugurar em 1963) na Rua Barao do Rio Branco. A abertura da travessa Marumbi que se constituía num dos atravancamentos do sistema viário nas proximidades da praça Tiradentes, fez com que a valiosa propriedade da família Pinheiro Lima ganhasse uma nova frente. Os fundos do centenário sobrado construído ainda no século passado - (e que mesmo com alterações, foi mantido em parte) - dava para um amplo terreno que, com a abertura da quadra foi valorizada como ponto comercial. Assim, após delicadas negociações foi assinado o contrato pelo qual a empresa Sul ali construiria um cinema com o direito de ter sua exploração por 40 anos. Através da construtora Tabajara as obras foram edificadas e há exatamente 29anos o circuito Sul era valorizado com mais uma esplêndida sala da exibição. Na inauguração, o filme projetado foi a comédia "volta meu Amor" (Lover Come Back, 1961 de Delbert Mann), com Doris Day e Rock Hudson. Com programação selecionada e público classe "a" o glória sofreria, entretanto, com o passar dos anos uma queda de programação e mudança de espectadores. Em 1965, quando um dos sócios da Empresa Sul, o baiano Francisco Verde Martinez, afastou-se da sociedade recebeu os cinemas de Curitiba, incluindo o Glória. Aqui radicado por dois anos, época em que se tornou famoso pelo seu espírito festivo e paixão pelas cartas, o bonachão Verde Martinez acabaria, em julho de 1967, vendendo a empresa para o então emergente e próspero Arnaldo Zonari, que com uma pequena distribuidora - a Fama Filmes - mas trazendo para o Brasil filmes românticos (como "Dio come ti amo") e especialmente bangue bangue italiano havia feito fortuna e expandia sua rede exibidora. Assim, repentinamente, o grupo Zonari adquiria não só os cinemas de Verde Martinez como, também ficaria com o circuito da Orpoca. xxx Coincidentemente com a nova administração cinematográfica, aconteceram dois fatos: a programação do cine Glória começou a buscar títulos mais populares, atraindo uma faixa de espectadores de camadas humildes e que preferiam os filmes bangue bangue, violência e sexo. Mesmo fenômeno comportamental que se observaria num cinema localizado há poucos metros, o Scala , na esquina da Travessa Tobias de Macedo, com a Riachuelo e que acabaria se integrando depois no chamado circuito do orgasmo cinematográfico. O segundo fato que, praticamente, condenou o glória de casa exibidora de filmes de categoria a integrar o circuito do orgasmo foi a reforma que fechou a entrada pela Travessa Marumbi e lhe deu acesso pela galeria na Praça Tiradentes - debaixo do sobrado em que sempre residiu a família Pinheiro Lima. Novamente foi o engenheiro Tabajara Domit Fernandes, da construtora Tabajara (**) que executou as obras de reforma - transformando a ampla sala em dois pequenos cinemas com 400 e 300 lugares. O arquiteto Rodolfo Doubeck Filho fez o projeto de adaptação do cinema que reabriu na noite de 25 de novembro de 1982 os filmes "O homem da lente mortal", de Richard Brooks no Glória I e o musical "Annie", versão do sucesso broawiniano dirigido por John Huston, no Glória II. A tentativa de iniciar uma nova programação com filmes de qualidade não durou muito: mesmo com os protestos da proprietária do imóvel - que como líder religiosa, fundadora da Associação Cristã Feminina e outras entidades feministas em Curitiba (***), jamais aceitou ter num prédio de sua propriedade cinemas que apresentavam filmes de violência e especialmente pornográficos. Por mais boa vontade da empresa - não havia alternativa: somente com uma programação brega, apelativa em todos os sentidos, o glória, em sua duas salas, teve, nestes últimos nove anos condições de lucratividade (****). Um estudo sobre o comportamento do público que transita pela Praça Tiradentes - coincidentemente defronte a Catedral Metropolitana - poderá explicar porque uma sala de exibição, quando tinha entrada na rua paralela, atraía uma faixa "a" de espectadores e que, na simples mudança de acesso, perdeu esta clientela! xxx Jessy Pereira, 37 anos, que há três anos gerenciava o glória, era o mais desolado dos 18 funcionários que trabalhavam na sala destruída pelas chamas há 11 dias. - "Morreu um cinema, o nosso emprego e mais um pouco desta cidade"- comentava, com o apoio de Domingos Fogaça, 29 anos, que há um ano era um dos porteiros na sala. No Glória I, os últimos filmes projetados pelo operador Otávio Mattos foram "Uma professora erótica "e "Extremos do sexo Explícito". No Glória II, o operador Assis Felipe, na noite de quarta-feira, 22, colocou pela última vez na velha projetora que estava no cinema desde sua inauguração as cópias de "Sedentas de Sexo" e "Taradas do Sexo". Horas depois, num incêndio provocado pela irresponsabilidade de um grupo de pequenos marginais, o cinema queimava. As máquinas de projeção e três dos filmes foram salvos (um quarto, ficou avariado, pelo prejuízo de Florisval Lopes, dono da Reflivo, principal fornecedora de filmes pornográficos para os cinemas do circuito do orgasmo). Jessy Pereira, como outros gerentes que nestes últimos anos tem administrado as salas de exibição que caíram na programação pornô (Scala, Ruy Barbosa, Morgenau) tem estórias deliciosas sobre o comportamento de certos espectadores fanatizados pelo sexo explícito, "que chagavam a vir em todas as sessões, para se deliciarem com o que viam na tela" conta - sem, entretanto, oferecer maiores detalhes. Assim como não revela maiores informações sobre casais que procuravam o cinema não só em busca do prazer lascivo das imagens, como no encontro de companhias para fazer, posteriormente, ao vivo, o que os filmes sugerem. - "Dentro do cinema, entretanto, sempre houve um bom comportamento,. Nunca vi nada que fosse contra os bons costumes"- garante Jessy. Notas: (*) O Teatro do Sesi nunca chegou a ter uma programação artística coordenada. Voltado basicamente para atividades recreativas - especialmente do lado esportivo, ocupando seu palco / ginásio, priorizava o uso interno. Assim, produtores e empresários artísticos queixavam-se da burocracia para a cessão daquele espaço. Também a inexistência de equipamentos modernos que são indispensáveis para espetáculos (refletores, sistemas de som, etc.) limitava o seu aproveitamento. Apesar destas deficiências, dezenas de promoções artísticas ali aconteceram desde sua inauguração em 1971. (**) A construtora Tabajara foi responsável por obras de construção e reformas de vários outros cinemas da cidade - como o Condor, Bristol, Lido (quando de sua separação em duas salas), etc. (***) Como fundadora e presidente da Associação Cristã Feminina, a advogada Rosy Pinheiro Lima, primeira deputada do Paraná (1946/49), foi uma das líderes na Marcha com Deus pela família, entre 1963/64 protestando contra o governo de João Goulart. (****) Cobrando ingressos a Cr$ 250,00, os cines Glória I / II tinham uma freqüência média de 700 espectadores por dia. Quando tentou manter uma programação de filmes de qualidade esta freqüência caiu para menos de 50 espectadores, motivo pelo qual a direção da Vitória Cinematográfica, optou por incluí-lo no chamado circuito do orgasmo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
09/06/1991

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