(Sor) risos de Margarida
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 27 de maio de 1978
Para a maioria do público que está disputando as 223 poltronas do Paiol, desde quarta-feira, a principal atração é a triz que algumas telenovelas da Rede Globo especialmente "Bandeira Dois", tornaram conhecida em todo o País. Há os que também vão esperando ver apenas uma comédia e ainda, aquela faixa de espectadores masculinos, eroticamente atraídos ao receberem a sussurrante informação de que a atriz aparece, em vários momentos, nua, generosamente exibindo sua plástica perfeita. Para a platéia feminina, uma justa compensação: o ator Chico Ozanam, também aparece totalmente despido - assim permanecendo no palco, por quase 10 minutos.
Tudo isso não tem, entretanto, qualquer importância. "Apareceu a Margarida" (Paiol, até amanhã, 21 horas) é uma das peças mais importantes da dramaturgia contemporânea brasileira, um dos espetáculos mais vigorosos já apresentados em Curitiba pela força do texto de Roberto Athayde, pela direção de altíssima voltagem de Adherbal Júnior e, logicamente, pela presença em cena, com toda segurança, da atriz Marilia Pêra. O resultado não poderia ser diferente: uma peça que justifica que o público vá ao teatro. Principalmente nesta Curitiba, onde os espetáculos teatrais, de bom nível, andam escassos há muitos anos.
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Para quem assistiu a primeira montagem de "Apareceu a Margarida", em 1973, com a mesma Marilia Pêra ou, em 1974, pode ver, a peça com Bethy Erthall, numa excursão por várias cidades, incluindo uma discreta temporada no Paiol, a surpresa será grande. Praticamente o diretor Adherbal Júnior, responsável pelas três montagens, conseguiu criar em cada uma, realmente uma ambientação e propostas novas - mas mantendo-se sempre fiel ao texto original. A montagem de 1974, vista na curta temporada no Paiol - e, na época, um grande fracasso em termos de público - era totalmente despojada. Adherbal Júnior tentou ver até onde o texto de Athayde resistiria a simples presença da atriz no palco, esgrimindo o monólogo que por sua força, intensidade e, principalmente, colocações contemporâneas, transmite ao público a sensação de estar presente na verdade, frente a um espetáculo com muitos interpretes.
A solução encontrada por Roberto Athayde não poderia ser das mais felizes: uma professora de métodos duros, a personificação do Poder, numa sala de aula, em que os alunos são os espectadores. E durante quase duas horas, com um pequeno "recreio", faz colocações que, mais do que isso, provocam a reflexão. Essa universidade do tema, tem garantido ao seu autor, Roberto Athayde, uma excelente receita de direitos autorais, já que "Apareceu a Margarida" vem sendo montada em muitos países, em alguns inclusive com atrizes famosas (Annie Girardot, em Paris; Ellen Bursteyn, em Nova York).
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Ao ser convocado pelo empresário Guilherme Araújo e atriz Marilia Pêra, para uma nova produção de "Apareceu a Margarida", Adherbal Júnior (Adherbal Freire Filho), 37 anos, cearense de Fortaleza, 21 anos de teatro, 25 peças como diretor, decidiu partir agora para uma montagem de amplos recursos cênicos. E, a idéia de um grande circo, em que a figura da professora é uma espécie de domadora e mestre-de-cerimonias ao mesmo tempo, lhe pareceu como a mais apropriada. Adaptada aos diferentes teatros a serem encontrados numa longa temporada por 4 Estados - Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Paraná, a montagem no Paiol, exigiu inclusive adaptações em sua "arena".
A construção de uma redoma em pano vermelho, que sobe e desce em direção ao teto, acabou dando a peça um tom ainda mais mágico e circense, marcada pela utilização dos mais vibrantes trechos da marcial música do Ringlin & Barnun Circus, que Adherbal extraiu de uma velha gravação da trilha sonora de "O Maior Espetáculo da Terra" (1953 de Cecil B. De Mille). De uma outra trilha sonora, "Barry London" (1975, de Stanley Kubrick), escolheu o sensível tema "Women of Ireland", de Sean O'Riada, que na interpretação do grupo irlandês The Chieftains, marca os momentos mais dramáticos da peça - especialmente a onírica cena final, de uma imensa da beleza visual e que oferece aos espectadores, uma série de dados, símbolos e signos para que cada um retire as interpretações que julgar mais conveniente.
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O texto de Roberto Athayde é objetivo: uma exposição sob o poder. Assim como o espanhol Carlos Saura, fez no magnifico "Ana e os Lobos" (1972), filme infelizmente pouco conhecido (exibido uma única noite em Curitiba, em fins de janeiro último), Athayde viu num longo monologo sobre a aprendizado da biologia, da vida, a disciplina, a formula de fazer o espectador pensar. Por certo, muitos conheceram "Margaridas" na vida e outros a conhecerão ainda. E com elas (tiveram) terão que aprender a conviver a resistir. A este texto, com sua linguagem livre, mas jamais pornográfica (apesar de todos os palavrões bem colocados), a encenação de Adherbal Júnior acresceu símbolos, atitudes e mesmo um personagem - um aluno que permanece o tempo todo no palco, sem pronunciar uma única palavra. Um personagem que propõe muitas interpretações - quase num hamleteano questionamento, sendo também uma espécie de ponte entre o Poder (Margarida) e os outros alunos (os espectadores). O espelho, a imagem do Sagrado Coração de Jesus (cuja localização, frente ao ator que se despe em cena, provocou irritadas reações em Bauru, SP), o globo terrestre, as quatro roupas que Dona Margarida troca em cena (inclusive o uniforme do Selecionado Brasileiro, na abertura da segunda parte), são mais do que simples elementos de decor. A cada um corresponde um significado, uma proposição, um dado que o diretor Adherbal Júnior oferece, como elementos de um puzzle capaz de tornar mais intenso e belo este espetáculo de tanta riqueza cênica, que atinge - e nisto reside seu grande mérito - tanto o espectador simples, que deseja ver no palco apenas a atriz que aprendeu a amar via-televisão, como também chega, com profundidade, naquela faixa de público que sabe exigir que uma peça não se esgote nos simples sorrisos de uma fria noite curitibana. Se (sor)risos há, eles são muito conscientes. E quase dramáticos.
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