Tese de Cesar também sobre "Cabra Marcado"
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de dezembro de 1984
O PROFESSOR Cesar Benevides, concluindo atualmente, mestrado em História, na Universidade Federal do Paraná, esteve no Rio, dia 24 último com uma única e especial finalidade: assistir ao lançamento mundial de "Cabra marcado para morrer", no I Festival Internacional de Cinema, Televisão e Vídeo. Não foi apenas por apreciar cinema e se interessar, particularmente, por esse filme, que acabou recebendo quatro prêmios do FestRio, incluindo o Tucano de Ouro. Paraibano de João Pessoa, 30 anos, Cesar Benevides, radicado desde 1958 em Londrina (e morando em Curitiba há apenas dois anos) está concluindo sua dissertação de mestrado ("Camponeses em Marcha"), que aborda a mesma temática do filme de Eduardo Coutinho: as ligas camponesas da Paraíba. Mesmo antes de concluir o trabalho, ao qual vem se dedicando integralmente nos últimos seis meses (e defendê-lo em termos acadêmicos), já há propostas para sua edição em livro. Afinal, representa o primeiro estudo em profundidade de um dos aspectos mais explosivos dos anos 50/60, no Nordeste do brasil, até hoje insuficientemente documentado. O filme de Coutinho - a grande sensação do FestRio e nesta semana abrindo o I Festival de Cinema Brasileiro de Caxambu (MG) - levanta a questão das Ligas Camponesas, através de dona Elizabeth Teixeira, ex-presidente da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, e sua família. Através de um cinema jornalístico e documental, Coutinho resgata uma parte da história do brasil e, sobretudo, prova, com imagens da maior emoção, as consequências do golpe militar de 1o de abril de 64 sobre milhares de famílias, personificadas na figura de dona Elizabeth, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado há 22 anos.
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Eduardo Coutinho planeja publicar o roteiro de "Cabra marcado para morrer", acompanhado de um depoimento sobre a verdadeira odisséia que foi realizar esse filme (iniciado em princípios de 1964 e só concluído, em cópia de 35 mm, há menos de três meses). Sem dúvida, será um trabalho que ajudará a compreenderem melhor a importância desse filme destinado a se tornar o grande sucesso do cinema brasileiro no verão de 1985, assim como "Jango", de Silvio Tendler, foi o grande acontecimento cinematográfico-político do ano que agora se encerra.
A publicação de "Camponeses em Marcha", de Cesar Benevides, virá complementar e enriquecer as informações sobre as Ligas Camponesas. Isto porque, com a seriedade e o rigor de historiador e bom discípulo de seu tio, o ex-deputado e historiador José Jofilly, (hoje morando em Londrina), Benevides preocupou-se em colocar no trabalho o máximo de informações possíveis.
Jofilly (70 anos, ex-deputado federal pela Paraíba, com participação ativa nas antigas Ligas Camponesa, único parlamentar a denunciar as violências do latifundiários daquele Estado) estimulou Cesar Benevides a debruçar-se sobre esse temas até hoje praticamente ignorado dos brasileiros - e deturpado em muitos aspectos. Mais do que a figura do ex-deputado Francisco Julião, a personalidade do líder camponês João Pedro Teixeira representa bem o que foi a luta dos agricultores da Paraíba em defesa de seus direitos, a partir dos anos 50. João Pedro Teixeira, fundador e presidente da Liga Camponesa de Sapé, PE (criada em 1958), foi morto no entardecer do dia 2 de abril de 1962, na estrada Sapé-Café do Vento, por três homens armados de fuzil. Algumas semanas antes, outro líder camponês, Alfredo Nascimento, havia sido, também assassinado. Apesar de identificado o principal mandante do crime - o rico fazendeiro Aguinaldo Veloso Borges, este não foi preso. Sexto suplente da Assembléia Legislativa da Paraíba, armou-se um esquema de posse e renúncia dos cinco outros suplentes, de forma que lhe possibilitasse assumir uma cadeira de deputado, ficando, dessa maneira, acobertado pela impunidade. Os três assassinos, julgados meses depois, foram absolvidos.
Entretanto, até a revolução de 1964, que veio acabar, totalmente, com as Ligas Camponesas, o nome de João Pedro Teixeira tornou-se um símbolo de resistência campesina. Isso levou, já em 1962, o então jovem Eduardo Coutinho a idealizar um semidocumentário sobre sua vida e luta, com a participação de sua própria família. Em princípios de 1964, no engenho Galiléia, em Pernambuco (já então sob o governo Miguel Arraes) foram iniciadas as filmagens, interrompidas, violentamente, a 1o de abril, quando o Exército invadiu o engenho, com alegação de que ali corria treinamento de guerrilhas, "orientadas por cubanos". Alguns membros da equipe foram presos e outros fugiram para Recife, conseguindo, depois, chegar ao Rio de Janeiro. o material rodado só não foi destruído porque já havia sido enviado ao Rio, para revelação em laboratório. E, durante 17 anos, Eduardo Coutinho esperou que houvesse condições para poder retomar o filme, projeto no qual poucos acreditavam. Pessoalmente, nos dizia, momentos após os aplausos obtidos pelo seu filme na Sala Glauber Rocha, do Hotel nacional:
-" Agora, todos elogiam o filme. Mas, durante 17 anos, foram raros os que me apoiaram. Entre os cineastas a quem muito devo pela força, está David Neves".
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O que mais emociona em "Cabra marcado para morrer" é a presença de dona Elizabeth Teixeira, uma paraibana inteligente, politizada, que, aos 59 anos, é, naturalmente, diferente daquela jovem mãe d 20 anos passados. Quando o marido, João Pedro, foi assassinado, dona Elizabeth não se afastou da luta. Foi a Brasília depor na CPI instaurada sobre a violência n Paraíba contra as Ligas Camponesas, assumiu a presidência da Liga de Sapé e, no Recife, participou de comícios e movimentos de protestos (imagens de alguns deles, feitos em 1962 por um cinegrafista amador, estão também no filme). Por sua atividade política, quando da revolução, dona Elizabeth não teve condições de voltar a Sapé. O cineasta Wladimir de Carvalho, também paraibano, assistente de direção, [conduziu-a] ao Recife, onde ficou escondida algumas semanas. Depois, após prestar uma série de depoimentos no IV Exército, retirou-se para uma pequena cidade, a 700 km de João Pessoa, São Rafael, no Rio Grande do Norte. Como não podia levar a numerosa família, teve que se separar de 9 dos 11 filhos, que foram entregues a parentes e amigos. Apenas um deles, João Pedro, a acompanhou.
Mudando de nome - passou a chamar-se Marta - e sem revelar o passado a ninguém, dona Elizabeth [permaneceu] incógnita, em São Rafael, até 1981, quando Eduardo Coutinho, já retomando a realização do filme, ali foi procurá-la. A partir de então é que dona Elizabeth começou a ter notícias dos outros filhos, já crescidos e morando em Pernambuco, Rio de Janeiro e Cuba. Entretanto, até agora ainda não pode reencontra-se com dois deles: Israel, que em 1964 já se encontrava em Havana, estudando Medicina, e Paulo, hoje com 30 anos, no interior de Pernambuco. Com os filhos que moram no Rio (Marinês, 22 anos; Marta, 42; e José Eudes, 25 anos), reencontrou-se na semana passada, quando Coutinho a trouxe ao Rio, para que comparecesse à estréia de "Cabra marcado para morrer".
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No filme de Coutinho, através das sequências feitas em 1964, cenas de arquivos diversos e pesquisa em jornais, acrescidos a depoimentos com [vários] dos filhos de João Pedro e dona Elizabeth, reconstituiu-se todo um período da vida política brasileira. Ziraldo Pinto, o consagrado cartunista brasileiro, um dos tantos que choraram ao ver o filme, tinha razão, ao lembrar que "o Tancredo tem que ver, urgentemente, essa obra panorâmica do que foi o Brasil". Isto porque, como Cesar Benevides explica, em sua dissertação de mestrado quando houve o assassinato de João Pedro Teixeira, Tancredo Neves era o primeiro-ministro do governo João Goulart. Aliás, o próprio presidente João Goulart foi a João Pessoa, em 29 de julho de 1962, em decorrência do radicalismo nas relações entre camponeses e latifundiários na região. Houve um comício no qual, além de Goulart e do governador da Paraíba, Pedro Gondim, falou o então deputado federal José Jofilly. Documenta Cesar Benevides que "Jango fez um discurso moderado surpreendendo as lideranças urbanas do campesinato paraibano, que esperavam, ao menos uma demonstração de repúdio pelos assassinatos recentes de Alfredo nascimento e João Pedro Teixeira. O presidente da República revelou o desejo de uma conciliação pelo alto".
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Há duas semanas que "Cabra marcado para morrer" passou a ocupar grandes espaços da imprensa e televisão.
Mesmo antes do lançamento, no circuito comercial (o que a princípio esta previsto, em São Paulo, para esta semana, no Belas Artes), o filme de Eduardo Coutinho adquira merecida notoriedade. A coincidência do também paraibano Cesar Benevides estar concluindo a dissertação de mestrado (e que brevemente será um livro destinado a notável repercussão) faz com que, apesar da distância física e cronológica dos acontecimentos, o tema Ligas Camponesas venha a adquirir grande atualidade e interesse. Coutinho dispõe-se a vir a Curitiba, quando da estréia do filme. Benevides e seu tio, José Joffily, também aceitarão participar de debates a respeito. Com isso, todos que se interessam em conhecer a verdadeira história contemporânea deste País, terão excelente oportunidade.
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