Festival do Rio (III) Emoção maior no "Cabra" marcado para o sucesso
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de novembro de 1984
RIO (Especial para O ESTADO DO PARANÁ) - Ao final da projeção de "Cabra marcado para morrer", na manhã de sábado, 24, os jornalistas e convidados do I Festival Internacional de Cinema, Televisão e Vídeo deixavam a Sala Glauber Rocha, emocionados (muitos com olhos lacrimejando). Realmente, nenhum dos filmes apresentados até agora trouxe uma carga tão grande de emoção como esse documentário que, iniciado em princípios de 1964, foi interrompido pela revolução e só pôde ser retomado entre 1981/83. À saída da sessão, outra emoção: a sra. Elizabeth Teixeira (principal personagem do filme, no saguão, ao lado da atriz Norma Benguel, rodeada de jornalistas e fotógrafos, completava o quadro de realismo e sentimentos que o filme passa ao espectador. Ao lado de "Os anos JK" e "Jango" - ambos documentários de Silvio Tendler - esse "Cabra marcado para morrer" está entre os mais perfeitos e importantes momentos do cinema brasileiro. Sua visão e emoção. Um nó na garganta entre imagens de melhor jornalismo cinematográfico, que resgata para toda uma geração um enfoque de um período da repressão: as Ligas Camponesas do Nordeste.
Em 2 de abril de 1962, o líder camponês João Pedro Teixeira foi brutalmente assassinado. Tinha 44 anos e dirigia uma liga camponesa em Sapé, na Paraíba. Na época, Eduardo Coutinho, então um jovem integrante da UNE volante, que levava as atividades do Centro Popular de Cultura, conheceu no Recife a viúva do camponês, dona Elizabeth, participando inclusive de comícios e manifestações de protestos pelo brutal crime cometido por latifundiários que se assustavam com a organização dos camponeses.
Surgiam, então, as primeiras imagens de um filme que seria viabilizado para princípios de 1964. Houve, então, o golpe militar e, juntamente com a intervenção militar na usina Jerusalém (desapropriada pelo governo Cid Sampaio alguns anos antes, para ali se desenvolver uma experiência de reforma agrária), a equipe de Coutinho teve que fugir, enquanto o Exército aprendia armas, negativos virgens e material de filmagem - acusando de que se tratava de "uma equipe comunista, de cubanos, realizando filme para instruir os camponeses a partir para a luta armada".
Só dezessete anos depois, Eduardo Coutinho pôde retomar o filme. Com recursos bancados pelo produtor Zelito Viana, iniciou, então, um novo processo de investigação: o que teria acontecido com dona Elizabeth, viúva do líder assassinado, e seus 10 filhos? Qual o destino dos outros líderes camponeses presos e perseguidos pela revolução?
O resultado é um filme que em 119 minutos coloca toda uma realidade brasileira, através de emocionantes depoimentos e que estabelece um processo de meta-linguagem: um filme que fala do filme que seria realizado. As primeiras imagens são as que mostram os participantes da seqüências feitas em 1964 (e que só não foram destruídas porque haviam sido enviadas para o Rio de Janeiro, antes do golpe militar) assistindo sua projeção. A emoção vai em escalada, em cada seqüência na qual os personagens reais vão sendo resgatados em sua memória. Entretanto, é a partir da narrativa sobre o esfacelamento da família Teixeira que a emoção chega ao ponto de arrancar lágrimas do público. Após o golpe de março de 1964, dona Elizabeth teve que se refugiar numa longínqua cidade do Interior e seus 10 filhos foram distribuídos entre famílias.
Dona Elizabeth perdeu totalmente o contato com nove de seus onze filhos (uma delas, Marlu, havia se suicidado em 28/11/64) e só agora, 20 anos depois, motivada pela conclusão do filme, é que está conseguindo comunicar-se, novamente, com a família. Só esse enfoque já provocou profunda emoção entre público e jornalistas, que cercaram de toda atenção essa senhora de 59 anos, paraibana de Sapé, politicamente das mais lúcidas. Já houve até quem lembrasse que o prêmio de melhor atriz do festival deveria ser conferido a dona Elizabeth Teixeira, tal a força emotiva que transmite nesse filme-verdade, uma realização de características únicas, como o próprio realizador admitiu, em entrevista na manhã de domingo.
Coutinho, 51 anos, durante 9 anos atuando na televisão, realizou três outros filmes, após a interrupção de "Cabra marcado para morrer":
Um episódio de "ABC de amor"; O homem que comprou o mundo" e "Faustão". Mas concluir "Cabra..." será sua grande meta e, hoje, surpreso pela repercussão do filme (já teve convites para participar dos festivais internacionais de Berlim, Nova Yorque, San Francisco e Rotterdam), confessa que não pretende realizar novos filmes. O lançamento comercial de "Cabra marcado..." deve acontecer dia 3, no Belas Artes, em São Paulo, mas o filme irá também ao Festival do Cinema de Caxambu, Minas Gerais, a convite do secretário de Cultura daquele Estado, José Aparecido, que, já chamado de futuro ministro da Cultura, também apareceu no festival, atraindo muita atenção.
Com toda a certeza, "Cabra marcados para morrer" deverá estar entre os premiados. Ao menos o troféu o OCIC (Organização Católica de Cinema) deverá ir para o filme de Eduardo Coutinho, dentro da ótica de "Obra de maior volume humanistico". Outro dos favoritos do festival, "1984", de Michael Redford, estreou há sete semanas em Londres e já valeu o prêmio de melhor ator, outorgado, duplamente, a John Hurt e Richard Burton (em seu último trabalho para o cinema), no último dia 4 de novembro, num festival europeu.
Dos 17 filmes que concorreram nesse 1º Festival Internacional de Cinema, Vídeo e Televisão, não houve grandes sensações. A versão que Redford fez para a tela do romance de George Orwell impressionou bastante o público e a imprensa. Uma densa e pessimista visão do mundo do futuro, fotografado com muita habilidade por Roger Deakins e que transmite toda a aterradora visão que Orwell previa para a Terra em 1984. O júri do festival, presidido pelo brasileiro Nelson Pereira dos Santos, terá passado esta última terça-feira "Seqüestrado em local ignorado", como diz o diretor-geral Ney Sroulevich, para decidir as premiações do "Tucano de Ouro", o grande prêmio, melhor diretor ator, e melhor curta-metragem. Cinco outros prêmios, OCIC, Juventude, Críticos do Rio de Janeiro, Pierre Kast e Quixote, também serão outorgados aos longa-metragens inscritos. Embora seja difícil alguns decepcionaram bastante. De princípio, o vergonhoso filme de Antônio Carlos Fontoura ("Espelho de carne"), um dos dois representantes do Brasil. Também "El outro", do México; "My first wife", da Austrália (direção de Paulo Cox); "Ordeal by innocence", de Desmond Davis (EUA); e "Notre historie", de Bertrand Blier (França), estão entre as frustrações maiores. A carioca Marília Pera, por sua atuação no violentíssimo "Mixed lood", de Paul Morrisey, tem sido lembrada como candidata a melhor atriz, embora o filme tenha também decepcionado, apesar da irreverência do diretor. Irreverentes - mas unindo muita crítica em seus filmes - foram também o francês Claude Zidi ("Les Ripoux", França, que a Gaumont lançará comercialmente em 1985) e uma surpreendente produção cubana, "Se permuta", de Juan Carlos Tabio, abordando a questão do uso de drogas (também a forte temática de "Mixed Blood"): "Piano forte", da jovem e bela francesa Comencini (filha do veterano diretor Luigi Comenciani), tem defensores ardorosos, inclusive a indicação de Giulia Boschi, como melhor atriz. Duas produções latino-americanas merecedoras de atenção: a envolvente "Los chicos de la guerra", do argentino Bebe Kamin - humana visão de três jovens que vão lutar na guerra das Malvinas; e o ingênuo "Carne de tu carne", do colombiano Carlos Mayolo. Um filme emocionante, abordando uma temática universal - a velhice - foi "Vida, lágrimas e amor", de Nikolay Gubenko, representando a União Soviética. Já o espanhol "Epílogo", de Gonzalo Suarez, trouxe uma das narrações mais confusas entre tantos filmes aqui exibidos: um processo de meta-linguagem, com uma estória se encadeando a outra. Houve quem gostasse do processo narrativo, mas também muitos abandonaram a sala antes da projeção acabar.
Cada um dos filmes exibidos no Fesrio justificaria uma longa apreciação à parte, já que trazem muitos elementos de interesse. Assim como nos "tapes" apresentados há trabalhos interessantíssimos. Infelizmente, o que mais se lamenta é não se ter o dom de ubiguidade para se poder acompanhar as múltiplas opções na informação up To Date, do que de mais importante há em cinema e vídeo que os organizadores deste Fesrio conseguiram reunir, por dez dias, no Hotel Nacional.
LEGENDA FOTO - Adriana Herrán e David Guerrero, os jovens intérpretes de "Carne de tu carne", filme colombiano.
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