Triste "Splendor" com salas vazias na tela e no Bristol
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 30 de maio de 1990
Não poderia ser mais paradoxal! Um filme que tem no esvaziamento dos cinemas a sua história deixa o cartaz do Bristol , com uma das menores bilheterias do ano: apenas 424 espectadores em 25 sessões - já que 3 acabaram sendo canceladas por total ausência de espectadores.
O mais irônico: outro filme, com a mesma temática, teve mais de 60 mil espectadores em dez semanas de exibição.
Por que?
O público nem deu chance de "Splendor" ser visto. Simplesmente repudiou-o com a idiota alegação de que "Cinema Paradiso" é que era bom. Desde o ano passado, quando o vimos no V FestFortaleza, em mostra hors concours, não nos cansamos de enaltecer este filme de Ettore Scolla. As comparações com "Cinema Paradiso" são naturais e desde Cannes-89 - onde os dois estiveram em competição - o filme de Giuseppe Tornatore teve acolhida mais simpática: melhores críticas, o grande prêmio do júri em novembro, finalmente, em abril último, o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Tudo bem! "Cinema Paradiso" trouxe a maior carga emotiva já colocada num filme. Emocionou milhares de espectadores, arrancou lágrimas dos cinéfilos mais sensíveis, encantou pela revelação do garoto Salvatore Cascio como o aprendiz de operador que com o velho Alfredo (Philip Noiret) torna-se operador do cinema de sua cidadezinha. Tornatore, 34 anos, neste seu segundo longa-metragem (havia estreado em 1986 com "O Professor do Crime / Il Camorrista", que representou a Itália no FestRio-86, e está a disposição em vídeo) mostrou uma segurança, uma reflexão sobre o cinema que lhe deu reconhecimento mundial. Tanto é que, este ano, no recém encerrado 43º Festival de Cannes, voltou a concorrer com o recém concluído "Stanno Tutti Bene" - que mesmo sem obter nenhuma premiação, teve boa escolhida crítica.
"Splendor" pode não ser o melhor filme de Scolla, mas está longe de ser um mau filme. Ao contrário, perde na comparação com "Cinema Paradiso", mas, visto isoladamente, é também um hino de amor ao cinema que só um verdadeiro cineasta saberia fazer.
A abertura e o epílogo - com todo seu simbolismo, são verdadeiros preitos de admiração ao maior dos cineastas italianos - e um dos cinco mestres mundiais: Frederico Fellini. O mesmo Marcelo Mastroianni, 67 anos, que Tornatore escolheu para estrear seu "Stanno Tutti Bene" é o intérprete de Jordan, o principal personagem de "Splendor".
Se em "Stanno Tutti Bene" Tornatore trouxe de volta a grande atriz francesa Michele Morgan, 70 anos, desde 1970 ausente das telas, em "Splendor", Scolla lembrou-se de Marina Vlady, 52 anos, que há anos também não filmava. A idade não atingiu Marina Poliakoff Baradoff (seu verdadeiro nome): conserva a mesma sensualidade e classe de grande atriz que, em 1963 lhe deu o prêmio de melhor atriz em Cannes pela sua interpretação em "O Leito Conjugal" (L'Ape Regina, de Marco Ferreri).
Marcelo é Jordan, que herdou de seu pai, caixeiro-viajante das imagens, um cinema volante que ele transformou numa sala movimentada numa pequena cidade do interior. Marina é Chantal, uma dançarina francesa que abandona uma companhia mambembe para se tornar amante de Jordan e lanterninha de seu cinema. Massimo Troisi é Luigi, um apaixonado por cinema que se torna o fiel projecionista - e divide com Jordan o leito de Chantal - mas num envolvimento tão suave que o "menage a trois" não traspõe qualquer fronteira. Ao contrário, tal como Jules e Jim, os dois aprendem a ter Chantal como a musa-mulher-amiga-companheira dos tempos de vacas gordas do "Splendor" - e a companheira em sua decadência.
Há os personagens fascinantes - Giovanna (Benigna Luchetti), a irmã de Jordan; o crítico de cinema provinciano Cocomero (Ferrucio Costronuovo) e, naturalmente, o vilão Don Arno (Vernon Dobtcheff), com seu bigodinho de cafajeste rodrigueano - que espera o debacle financeiro de Jordan para dar o golpe final e se apossar do cinema transformando num shopping center.
Herdeiro direto da tradição da comédia italiana surgida no pós-guerra com a geração de Domencini, Dino Risi, Petrangeli, Ettore Scolla, 59 anos, como diz Rubem Ewald Filho, foi a maior revelação do cinema italiano nos anos 60. Suas comédias sempre tiveram uma temática social, uma proposta política - dentro de sua coerência de membro do Partido Comunista Italiano: o machismo peninsular ("Ciúme à Italiana", 70), a amizade ("Nós que nos Amávamos Tanto", 74), a opressão de uma mulher (Sophia Loren) e um intelectual gay (Mastroianni, em "Um Dia Muito Especial", 77), a visão marxista da história ("Casanova e a Revolução") e, mais recentemente, "O Baile" (83, no qual excluiu totalmente a palavra) e, por último, "A Família" (86) - são alguns dos títulos da filmografia de Scolla, que o fazem merecedor do maior respeito e admiração.
Assim, como entender, que "Splendor" fracasse desta forma tão imensa nesta Curitiba que alguns beócios insistem em classificar como "cidade teste cultural?" Não há nada que justifique o desinteresse por um filme inteligente, bem realizado - e que mesmo prejudicado pela comparação a "Cinema Paradiso" - e com um péssimo lançamento (mais uma vez, a Warner agiu com um amadorismo indesculpável, confirmando a vinda da cópia apenas 48 horas antes, impedindo qualquer promoção maior) - não mereceria ter sessões canceladas.
Se Tornatore em "Cinema Paradiso" deixou as inúmeras citações explícitas feitas durante as projeções no decorrer da vida do Paradiso sem qualquer identificação - exigindo, assim, dos cinéfilos, um exercício de memorialismo para identificar os fragmentos visuais de quase meio século de cinema, Scolla, generosamente, ao final, relaciona todos os filmes dos quais foram extraídas seqüências para mostrar as várias fases do "Splendor": "Amarcord" (Fellini); "A Batalha de Argel" (Pontecorvo); "A Noite Americana" (Truffaut); "Aquele que Sabe Viver" (Dino Risi, de quem Ettore foi assistente e roteirista); "De Punhos Cerrados" (Marco Bellochio); "A Grande Guerra" (Mário Monicelli); "A Felicidade não se Compra" (Frank Capra); "Metrópolis" (Fritz Lang); "Playtime" (Jacques Tati); "Sciopinone, o Africano" (Carmine Gallone); "A Árvore dos Tamancos" (Ermano Olmi); "Morangos Silvestres" (Ingmar Bergman) e "Z" (Costa-Gravas).
Na Itália, a versão incluía também seqüências de "La Cena Delle Beffe" (Alessandro Balsetti) e "Milagre em Milão" (Vittorio de Sicca), que, por razões de direitos autorais, não foram utilizadas na edição distribuída pela Warner.
Na verdade, parece existir em "Splendor" dois filmes: um em preto e branco, mais emotivo - e outro, a cores, do presente. O flash back tem uma presença mágica, enternecedora - enquanto as seqüências coloridas, em muitos momentos, fazem sentir a ausência da (bela) trilha sonora de Armando Trovajolli. Mesmo reconhecendo-se estes fatos, não se pode deixar de incluir "Splendor" na relação dos grandes filmes que tiveram justamente a sala de exibição como tema-espaço - de "A Última Sessão do Cinema" (1970, de Peter Bogdanovich) ao "Royal" na qual o pianista Celest Beaumont em "Doces Sonhos do Passado" (Les Portes Toumantes, 88, do canadense F. Mankiewicz) vive seus momentos de deslumbramento - e, junto a todos, a magia de "A Rosa Púrpura do Cairo" (85, de Woody Allen), com a ingênua Cecile (Mia Farrow), colocando tanta emoção em seu imaginário da usina dos sonhos que faz o personagem deixar a tela e viver com ela com grande amor.
No final de "Splendor", o cinema sendo retomado pelos espectadores que há muito o haviam abandonado - pela televisão e vídeo - fecha-se com a neve caindo sobre todos, numa das mais belas seqüências da magia desta arte.
Quem viu, jamais esquecerá. E quem desprezou "Splendor", deve penar com todos os Rambos do mundo no purgatório dos maus filmes das sextas-feiras, 13, dos subcinemas que tentam matar a sétima arte.
LEGENDA FOTO 1 - Massimo Troisi - operador Luigi - ouve as explicações do diretor Ettore Scolla, durante as filmagens de "Splendor", hoje, últimas 4 exibições no Bristol... se houver espectadores.
LEGENDA FOTO 2 - Marina Vlady, ausente há anos das telas, retorna como Chantal em "Splendor", um belo filme que os curitibanos não quiseram conhecer.
Tags:
- A Árvore dos Tamancos
- A Batalha de Argel
- A Família
- A Grande Guerra
- A Noite Americana
- A Rosa Púrpura do Cairo
- A Última Sessão do Cinema
- Amávamos Tanto
- Armando Trovajolli
- Cinema Paradiso
- De Punhos Cerrados
- Dino Risi
- Ermano Olmi
- Ettore Scolla
- Federico Fellini
- Festival de Cannes
- FestRio
- Frank Capra
- Fritz Lang
- Giuseppe Tornatore
- Il Camorrista
- Ingmar Bergman
- Jacques Tati
- Marcelo Mastroianni
- Marco Bellochio
- Marco Ferreri
- Marina Vlady
- Mário Monicelli
- Massimo Troisi
- Mia Farrow
- Michele Morgan
- Morangos Silvestres
- Na Itália
- O Baile
- O Professor do Crime
- Partido Comunista Italiano
- Peter Bogdanovich
- Philip Noiret
- Sabe Viver
- Salvatore Cascio
- Sophia Loren
- Stanno Tutti Bene
- Um Dia Muito Especial
- Vittorio de Sicca
- Wood Allen
Enviar novo comentário