Doces momentos do cinema
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 14 de outubro de 1989
Quantas cidades não tiveram cinemas iluminados em suas fachadas com o nome de Royal? Salas acolhedoras, com pequenos hall de entrada, nos quais eram afixados os cartazes das "próximas atrações ao lado de pequenas bomboniéres com doces que ficaram no sabor da memória de gerações que ali descobriram a magia das imagens iluminadas!
Esta magia de um cinema-fascínio de uma época que passou, tem sido, nostalgicamente, revivido pela sensibilidade de realizadores como Woody Allen ("A Rosa Púrpura do Cairo") ou Ettore Scola ("Splendor", apresentado no último Festival de Cannes, ainda inédito no Brasil), no qual o cinema é feito em torno da própria sala de exibição. Uma poesia que só cineastas que aprenderam a amá-lo como forma de comunicação, em imagens de 35 mm - longe da portabilidade e frigidez do vídeo - poderiam fazer.
À Woody e Scola - e para ficar em apenas dois exemplares - pode-se acrescentar agora mais um nome; Francis Mankiewicz. Com "Doces Ecos do Passado", este realizador canadense se inclui, por sua sensibilidade e emoção, entre os cineastas que se voltando ao próprio cinema realizam uma pequena jóia de imagens. Aos 45 anos, uma carreira iniciada em 1972 ("Les Temps d'une Chasse"), mas só com seu "Les Portes Tournantes" que chegou a uma das mostras de Cannes em 1988, concorreu pelo Canadá no V FestRio e obteve premiações em seu país, é que Mankiewicz tornou-se um nome conhecido. As reminiscências da pianista Celeste Beaumont (Monique Spaziani), de sua infância no idílio Val d'Amour, no interior do Canadá, até o seu outono de vida, como pianista num clube de jazz em Nova Iorque - aonde vai procurá-lo o seu único neto, Antoine (François Méthe) encadeiam conflitos existenciais e humanos não tiram o ar de fábula, de uma poesia simples e comunicativa.
Embora exista uma clara separação entre duas partes do filme - na primeira, a saída de Celeste de sua numerosa família (11 irmãos) para trabalhar como pianista do Sr. Litwin (Remy Girard) na cidade de Campbelton, 1922 - e do qual há todo o deslumbramento da magia cinematográfica; na segunda, com a chegada do cinema falado ("O Cantor de Jazz/The Jazz Singer", 1927, de Cross Crosland) e o seu casamento com o inseguro Pierre Blaudelle (Jacques Penot), dominado pela autoritária mãe Simone (Françoise Faucher) - que o leva a abandonar a cidade, após a morte do marido na guerra, deixando o filho, Madrigal (Gabriel Arcand) com a família do pai, o drama perde um pouco do encanto da primeira parte - mas nem por isto prejudica a narrativa.
Narrado em dois tempos - com o recurso das ações paralelas do início do século e o drama de Madrigal, um pintor solitário, calado e amargurado pela separação da esposa, Lauda (Miou-Miou), só tendo o apoio do filho Antoine, pianista como a avó - "Les Portes Tournantes" abre-se, como sugere o título original, em visões girantes do mundo em seus personagens simples e cativantes.
Particularmente a quem ama o cinema, em sua forma tradicional de projeção, as seqüências em que a jovem Celeste, com seus coloridos vestidos criados à maneira de Edna Purvance e Greta Garbo, encanta as platéias do cine Royal, acompanhando ao piano as imagens de "A General" (1927, de Buster Keaton) ou dos primeiros dramas românticos de D. W. Griffith, constituem, em si, motivo mais do que suficiente para assistir a este filme que glorifica o encanto do cinema mudo - como, aliás, os irmãos Taviani tão bem fizeram em "Good Morning, Babilônia" (1986).
A suavidade da fotografia de Thomas Vamos, a maravilhosa trilha sonora criada por Françoise Dompierre (46 anos, um dos mais importantes compositores canadenses da atualidade) e interpretações marcantes (embora Monique Spaziani esteja um pouco envelhecida para o papel primaveril que interpreta) fazem de "Doces Ecos do Passado" (Ritz, 5 sessões) um filme de visão obrigatória para quem ama o cinema. Ironicamente, já lançado em vídeo, é entretanto, daqueles filmes que perdem muito na redução para a telinha. Afinal, se não existem mais cinemas como o Royal e Odeon que encantavam Ceciles e Celestes, ao menos descendo as escadarias do atual Ritz pode-se imaginar os tempos que o original Ritz, numa Curitiba de outra época, passava a sensação de magia que o tempo e o comercialismo retirou da usina de sonhos que se chama cinema.
Enviar novo comentário