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Aramis

Um pesadelo na noite americana

"É só isso que há? É só isso que há? É só isso que há, meus amigos? Então continuemos dançando/ Vamos acabar com a bebedeira/ E nada façamos Se é só isso que há." ("Is That All There Is?", Jerry Lieber/Mike Stoller). Há filmes que se esgotam numa rápida visão. Outros abrem as portas da percepção para múltiplas interpretações. "Depois de Horas" (cine Astor, 5 sessões) é o exemplo da obra cinematográfica aberta para demoradas leituras e buscas dos mais diferentes significados. Um filme com uma estrutura simples - ação toda concentrada numa noite - com poucos personagens, mas que desde sua apresentação em Cannes, há menos de um ano (onde Martin Scorcese recebeu o prêmio de melhor direção) vem caminhando para se transformar num cult-movie deste final de década. Paul Hackett (Griffin Dunne, co-produtor do filme) é um analista de computadores. Na primeira seqüência - ao som de uma sinfomia de Mozart -, ele está ensinando o uso do aparelho a um colega, que sonha em ser editor "para publicar autores recusados". Na seqüência seguinte, Hackett está em seu apartamento de solteiro, yuppie bem sucedido, que por insônia vai (re)ver "Trópico de Câncer" de Henry Miller (1891-1980) num coffee-shop. Ali, uma jovem, Marcy (Rosanna Arquette) estabelece uma conversa a propósito da literatura de Miller, com citações de seus outros "Trópicos" (Capricórnio, 1939 e da trilogia "Sexus/Plexus/Nexus", 1943, 1953, 1959, respectivamente) e antes de sair do local deixa o seu telefone. Pouco depois, solitários, Hackett comunica-se telefonicamente com Marcy, que lhe propõe que ele vá à sua casa, no SoHo (South Houston Street, o novo bairro de artistas/intelectuais nova-iorquinos). A perspectiva de uma aventura (sexual?) com a mulher, faz Hackett seguir imediatamente para o endereço anotado. Começa então o mergulho de um homem absolutamente comum num pesadelo que pode ter várias definições: de Kafka a Munch, com passagens por símbolos lewissianianos de "Alice no País das Maravilhas". Uma sucessão de fatos o fazem, nos 80 minutos seguintes (em tempo cinematográfico) e 6 ou 7 horas reais (na história) ser um personagem enclausurado no SoHo: durante toda ação ele não consegur andar mais do que alguns quarteirões neste bairro, que até há 4 ou 5 anos era pura sede de indústrias e armazéns, que abandonando-o, tiveram seus enormes galpões transformados em ateliers e apartamentos para artistas que, devido à inflação dos aluguéis, tem deixado a mítica Greenwich Village dos anos cinqüênta. O extraordinário em "After Hours" é que sobre fatos aparentemente absurdos se concentra, tragicomicamente, toda uma experiência que poderia ser verdadeira: perda do dinheiro, envolvimentos com mulheres neuróticas e estranhas, perseguição como se fosse um ladrão, mortes e suicídios - transformando um cidadão que buscava apenas um encontro (de amor?) descompromissado, num personagem acuado, triturado numa longa noite de delírio. xxx Martin Scorcese, 44 anos, da geração de cineastas formados pela New York University Film School, 25 anos de cinema, desde seu primeiro longa ("Sexy e Marginal/ Boxcar Bertha", 1972), demonstrou sempre profundo fascínio por personagens enclausurados, localizados em espaços asfixiantes - mesmo quando trabalhando com histórias on the road como "Alice não mora mais aqui" (que, em 1974, valeu o Oscar de melhor atriz para Ellen Burstyn). Seu "Taxi Driver" (Palma de Ouro em Cannes, 76; várias indicações ao Oscar), pode ser visto como um primo deste "After Hours", assim como também é possível estabelecer parentescos de clima e personagens com "O Rei da Comédia" (1973) - por sinal, seu penúltimo filme e no qual Jerry Lewis teve uma dramática interpretação como um famoso comediante seqüestrado por um fanático admirador (Robert De Niro). Aceitando realizar "After Hours" porque estava sem filmar há 3 anos (só depois é que fez "A Cor do Dinheiro/ The Colour of Money", que tem várias indicações ao Oscar-87), Scorcese valorizou ao máximo o roteiro de Minior tem o clima e a estudante da Sundance Film Institut, que Robert Redford mantém em Utah. E realmente, a história de Minior tem o clima e a densidade que exigiria para sua transposição à tela a mão segura e a sensibilidade humana de um diretor como Scorcese. Ironicamente, o personagem Hackett nunca fica trancado em apartamento, bar ou boate - mas o cárcere noturno do SoHo é cada vez maior, um labirinto sem saída, um zig zag de personagens estranhos saindo da noite. Há o clima de filme noir ou mesmo de comédia (tanto é que espectadores riem em muitas seqüências), mas o envolvimento dramático, a profunda solidão de cada um na longa noite de procura, leva a uma visão quase niilista das coisas, da falta de sentido na vida - e que tão bem é transmitida na seqüência em que fugindo de seus perseguidores, Pat encontra uma solitária e embriagada escultora, June (Verna Bloon), que o protege transformando-o numa escultura viva - quase que como uma desesperada "Jaula Amorosa" (remetendo o espectador mais informado à lembrança do que fazia Jane Fonda com Alain Delon no filme de René Clemente, (1963). A dança desesperada de solidão, ao som da cortante "Is That All There Is?" (Jerry Lieber/Mike Stoller), na voz de Peegy Lee, é também um desesperado grito na noite - tão forte quanto a citação do quadro de Munch (ver texto abaixo), na noite de (des)encontros. E eu me apaixonei pelo rapaz mais maravilhoso do mundo Costumávamos dar longas caminadas ao longo do rio Ou então ficávamos horas olhando para o fundo dos olhos de cada um Estávamos tão apaixonados/Mas um dia ele foi embora E eu senti que havia morrido/ mas não morri E quando não morri, disse para mim mesma: É SÓ ISSO QUE HÁ NO AMOR? (trecho de "Is That All There Is?) LEGENDA FOTO - Hackett e o grito de desespero na solidão nova-iorquina: "Depois de Horas", um filme excelente em exibição no Astor.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
17/02/1987

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