Uma cinebiografia bem à moda antiga
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de julho de 1986
As cinebiografias constituíram no passado um gênero fértil para o cinema americano. Das superproduções (para a época) em que William Dieterle (1893-1972), usando o seu ator favorito, Paul Muni (1895-1949) levou à tela as vidas de Louis Pasteur, Emile Zola e Benito Juarez as nem sempre realistas biografias de nomes famosos do show bussines - o gênero chegou a fazer escola. Hoje, entretanto, em que pesem surpresas como o recente "Amadeus" (mas motivado mais pelo êxito da peça de Peter Schaeffer) as cinebiografias rarearam nas telas.
Portanto, não deixa de surpreender que cantoras country, de pouca projeção fora dos limites regionais, venham sendo revisitadas em suas vidas como Loretta Lynn (Butchers Hollow, Kentucky, 1935) em "O Destino Mudou Sua Vida" e no ano passado, Patry Cline (1932-1963) em "Um Sonho, Uma Lenda" (cine Condor, ainda hoje em exibição).
E se não fosse a força do Oscar - que em 1983 foi dado a Sissy Spacek pela interpretação de Loretta Lynn e, neste ano, valeu a indicação de melhor atriz a Jessica Lange por "Sweet Dreams", por certo estes filmes não chegariam em nossos circuitos comerciais - a exemplo de dezenas de outros de temática country, que permanecem inéditos no Brasil.
Afinal, raríssimos brasileiros sabiam até agora quem foi Patsy Cline, na verdade chamada Virgínia Patterson Hensley, nascida em 1932 em Winchester, Virgínia, pianista e cantora que após um modesto hit ("Walkin' After Midnight", 1957), só voltaria a frequentar as paradas após 1961 com "I Fall to Pieces" e "Crazy" - seu maior sucesso e realmente uma belíssima música.
Karel Reiz, 60 anos, checo de nascimento mas radicado na Inglaterra a partir dos 12 anos, nome respeitado por sua participação no movimento Free Cinema no início dos anos 60 ("Tudo começou Num Sábado", "A Noite Tudo Encobre"), mostra-se acadêmico e conservador na revisão biográfica de Patsy Cline - embora o gênero biográfico já lhe tivesse merecido atenção há 18 anos passados, quando fez uma bela fita baseada na vida da bailarina Isadora Duncan.
Entretanto, se a vida de Isadora foi repleta de lances marcantes, paixões inflamadas ao longo de suas viagens pelo mundo nos trepidantes anos da belle époque, o mesmo não aconteceu com a provinciana Patsy Cline, limitada ao território do Tennesse, no máximo deixando um marido acomodado Gerald (James Staley) por um companheiro mais viril, Charles Dick (Ed Harris), mas que, em compensação, lhe espancava sempre que bebia demais. Embora não carregando demais no tom de tragédia, a história de Patsy - suas relações com a mãe Hilda (Ann Wedgeworth), a dedicação aos dois filhos e uma carreira interrompida algumas vezes - não oferece momentos de maior emoção. O explicitismo de Karel Reiz na narração vai ao detalhe de mostrar o acidente com o avião no qual Patsy, seu empresário Rande Hughes (David Clennon) e os músicos de sua banda, retornavam de Kansas City, na manhã de 5 de março de 1963, há 850 milhas de Nasheville. Patsy havia se apresentado em Kansas num show em benefício da família de um artista country, DJ Cactus Call, que tinha morrido num acidente de automóvel.
A reconstrução da época - 1946/63 - é bem cuidada, tanto no guarda-roupa e direção de arte de David Haber, como na trilha sonora - utilizando gravações originais de Patsy Cline e algumas músicas incidentais, incluindo o belíssimo "Young At Heart" na voz de Frank Sinatra (1955).
Basicamente, o filme é de Jessica Lange: ela domina a personagem, emociona, vibra, provando assim ser a grande atriz do momento - num páreo duro para Meryl Streep. Aliás, a impressão que se tem é que se pensou antes em Jessica e depois no roteiro (de Robert Getchell) para este filme de linguagem acadêmica, narrado da forma tradicional - mas gratificante e informativo sobre o universo da música country - fortíssima em termos econômicos-artísticos nos EUA (por exemplo, para se obter ingresso no programa de rádio Grand Ole Opry, da WSM, em Nasheville, onde foi feita uma das sequências, é necessário fazer reservas com 4 a 6 meses de antecedência).
"Um Sonho, Uma Lenda" compensa as duas horas no cinema. Suave e com aquele toque de um tipo de cinema quase não se vê mais.
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