A bela poesia do Sul
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 10 de março de 1985
Luiz Coronel, poeta, letrista, publicitário e intelectual gaúcho - vencedor de muitos festivais de música nativista com suas belíssimas composições, especialmente o ciclo da "Gaudêncio Sete Luas" - é um dos mais fervorosos admiradores de um conterrâneo dos pampas, cujo talento ainda não foi suficientemente reconhecido: Carlos Nejar. Para Coronel, Nejar está numa categoria especial de poetas - a parte dos já monstros-sagrados Drummond ou do também gaúcho Mário Quintana. Coronel tem toda razão: basta a leitura atenta do "Livro dos Gazéis" (Record, 90 páginas) ou das "Vozes do Brasil/Auto de Romaria" (Livraria José Olympio Editora), para sentir-se a força e o lirismo deste poeta.
A propósito de "Livros dos Gazéis", o review Reinaldo Gama ("Folha de São Paulo, 16/9/84), lembrou que o gazel é um poema de amor, de origem islâmica, praticado por árabes e persas na Antiguidade e compunha-se - nos seus primórdios - de até 15 dísticos. Os versos do primeiro dístico deveriam rimar entre si e com o segundo de cada um dos demais. Dadas suas inclinações musicais, poderíamos aproximar o gazel da ode.
Nessa longínqua forma poética, Nejar compôs os versos deste seu livro - que embora mereça algumas restrições de Gama, não deixa de ser uma obra ousada e interessante.
Já em "Vozes do Brasil" (124 páginas, capa de Gian Calvi), sente-se que Nejar é um poeta dramático da vertente de Claudel. Sabe ser ao mesmo tempo lírico e dramático. Regional e universal. Telúrico e cósmico. Ismênia Dantas, com sensibilidade, indaga:
- Quem melhor do que Nejar para exprimir o lirismo, que é nota diferencial de nosso povo? O povo do Brasil não tem sentido lógico, mas está impregnado de afetividade e da intuição. E um povo só atinge a plenitude de si mesmo quando encontra o poeta dramático que o expressa.
Carlos Nejar respondeu a esta necessidade com este "Auto de Romaria", que chamou, de início, Ambição Civil. Um texto que poderá se tornar, logo, o grande poema do Brasil de nosso tempo, um poema indispensável e definitivo.
Extremamente poderoso, o verso de Nejar, tão nosso, tão genuíno, tão Brasil, une o simples, o coloquial, o cotidiano aos vôos mais inesperados de uma inspiração que, incessantemente, se renova nesse seu, nessas nossas Vozes do Brasil.
Admirador de Nejar, Luiz Coronel é também um poeta de grande riqueza. Pode-se sentir isto em seu "Buçal de Prata", agora em segunda edição (a primeira saiu em 1981, com patrocínio da Habitasul, que dava grande estímulo à literatura gaúcha). Com o subtítulo de "Andamentos poéticos para todas & milongas", Buçal de Prata é um belíssimo volume de poesia regionalista - na qual Coronel louva, com muita inspiração - os valores do nativismo - um movimento tão rico e que tem poetas da dimensão de Barbosa Lessa, Paixão Cortes, Aparício Silva Rillo, Jayme Caetano Braun e tantos outros. Com bonitas ilustrações e agrupados em temas, este "Buçal de Prata" é um belo livro de poesia regionalista - destacando-se inclusive os Cantos de Gaudêncio Sete Luas - personagem místico e heróico que Coronel criou e que, musicalmente, já chegou em várias canções.
Outro excelente poeta gaúcho - e que a exemplo de Coronel tem também feito parcerias de sucesso, defendidas e premiadas nos festivais nativistas (especialmente na Califórnia da Canção) é Gilberto Carvalho. Intelectual brilhante, responsável por um belo projeto de difusão dos valores gaúchos - o "Quero-Quero", através de programas radiofônicos, Gilberto, gaúcho de Alegrete, publicou "Negro da Gaita" e, no ano passado "Pássaro Perdido". Aliás, "Negro da Gaita", musicado, foi o grande premiado da 7ª Califórnia da Canção Nativista, em Uruguaiana, recebendo a "Calhanda de Ouro". Já "Pássaro Perdido" lhe daria uma nova vitória na 8ª edição do mesmo festival e, com toda razão, seria escolhido para título deste seu livro de "poesia campeira" - apresentado com excelente tratamento gráfico. Na introdução, José Edil de Lima Alves destaca a importância de poetas como Gilberto Carvalho participarem dos festivais nativistas do Rio Grande do Sul - responsáveis, assim, pela elevação do nível das concorrentes que têm sido apresentadas não só na Califórnia (esta, hoje, o evento mais famoso do Estado) mas em outras promoções - inclusive no Musicanto, em Santa Rosa, de cujo júri, na competição do ano passado, Gilberto participou.
A música e a poesia nativista exigem longos ensaios - tal a riqueza destas vertentes culturais. Várias editoras do Rio Grande do Sul, especialmente a Martins Livreiro, dispõe de dezenas de títulos com escritores que se dedicam ao gênero, de grande aceitação popular.
Luiz Coronel e Gilberto Carvalho são dois exemplos de talentos identificados a este lirismo de raízes, telúrico, sensível, no qual o canto, a amizade, a bravura, a terra, não dispensa também - e nunca - o amor e a mulher. Por exemplo, diz Gilberto
Nascer pampa/Foi acaso/Que se fez felicidade
Sendo inquilino das horas/por isso canto meu tempo
Com a sensação de querência/que me habita na cidade
Já com onze trabalhos musicados - por parceiros como Marcos Aurélio Vasconcelos, Carlinhos Hartlieb (falecido há 2 anos), Marlene Castro, Luiz Carlos Borges, Elton Saldanha, Dorotéo Fagundes e Luiz Silva - a poética de Gilberto é extremamente musical. Por isto, importante aqui citar o que disse a respeito de sua obra o jornalista Juarez Fonseca, editor de música da "Zero Hora" e que trabalha em dois livros sobre a música gaúcha dos últimos 10 anos:
"Uma das características mais marcantes da ideologia poética de Gilberto Carvalho me parece ser um certo sentimento nostálgico agudo, que ora se manifesta claramente, e ora se esconde atrás de uma expressão de revolta contra um mundo que evolui de uma maneira com a qual ele não concorda. E sem contradição, essa característica vai se dividindo nos versos de Gilberto. Em uns, ele apresenta o retrato de um homem destruído pela dramática frustração da utopia, não escondendo que a desesperança, embora consciente, é uma realidade também para ele mesmo. Em outros, ao contrário, encontra fé na mudança para melhor, desde que essa fé se processe a partir de ações concretas que impulsionem a mudança".
Um poeta másculo e sensível. Cantor de sentimentos e da terra, que diz, com tanta emoção:
Da flor do campo que foi
hoje é uma flor machucada
que aluga sonhos de noite
pra de dia nem ter nada.
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