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Bezerra faz "A Dívida da Vida" para que o mundo conheça nossos problemas

Ao lado de entrevistas com os mais influentes executivos do Fundo Monetário Internacional, Clube de Paris e diretores dos bancos credores. "A Dívida da Vida" (Life Liability, em sua versão internacional) trará depoimentos de brasileiros - ministro Marcílio Marques Moreira, da Economia; jornalista Barbosa Lima Sobrinho, economista Conceição Tavares, deputada Benedita da Silva e outros. Entremeadas a estas opiniões, imagens tomadas em diferentes locais, dentro de uma linha didática, que a leitura da sinopse permite aquilatar. Com curiosidade - e oferecendo aos leitores algumas informações de como o tema tão atual da dívida externa será abordado neste documentário - vamos transcrever a seguir alguns trechos do pré-roteiro de Bezerra e Orlando Senna (*). Imaginem a força que estas imagens terão no filme, fotografado em cores e com o ritmo vibrante que Octávio Bezerra e seu montador Dadá Severiano sabem dar as suas realizações! xxx CENA 1 - Um índio pende de uma árvore, enforcado. Nos últimos dois anos, 74 índios cometeram suicídio na reserva de Dourados (MT). A reserva tem uma população de 7 mil índios e os suicidas são, em sua maioria, jovens. Eles se matam por enforcamento ou por ingestão de agrotóxicos. CENA 2 - Uma limusine Bentley desliza suave pela City londrina, deslocando-se entre edifícios com nomes de bancos e outras instituições financeiras internacionais. O reluzente automóvel pára defronte ao Lloyds Bank, arquitetura pós-moderna, impressionante estrutura metálica bordada a neon azul, um monumento à riqueza. O chofer abre a porta para um jovem executivo, que avança com sua pasta de couro em direção ao cenário futurista, espacial, perdendo-se no vai-e-vem de pessoas tão elegantes e cleans como ele. CENA 3 - Um menino negro assalta um transeunte na praia de Copacabana, RJ, imobilizando-o com um revólver. O Brasil tem 58 milhões de crianças e adolescentes até 17 anos, dos quais 31 milhões (54%) vivem em estado de pobreza e 17 milhões (30%) em miséria absoluta. CENA 4 - Agitação nas bolsas de valores de Londres, de Tóquio, de Nova York. A tensão estampada no rosto dos corretores que participam do pregão em contraponto com os grandes painéis eletrônicos, os telefones sem fios, fax, computadores. CENA 5 - Uma operária nas dores de parto em um hospital sujo e sem equipamentos. Os rostos do médico e da enfermeira que cuidam dela também expressam tensão, angústia, dúvida, como se algo terrível estivesse para acontecer. Que relação existe entre estas imagens tão distintas? Qual a ligação misteriosa e sinuosa que liga diretamente os centros de acumulação e distribuição capitalista com as misérias do Brasil? xxx Em seguida, a estas primeiras imagens, há uma descrição sobre as relações econômicas da Europa e o Novo Mundo - especialmente a América do Sul, as profundas transformações no Velho Continente a partir do século XVI e a cobiça na América, com um modelo de colonização perverso, baseado no genocídio contra tribos indígenas em vários países. Imagens contundentes, focalizando o Nordeste, em sua miséria, mulheres grávidas trabalhando em condições insalubres. Cerca de 5 mil crianças menores de 5 anos morem por dia no Brasil em conseqüência de desidratação, sarampo, tétano, coqueluche, pneumonia etc. 60% destas mortes seriam evitadas com vacinas e tratamento de baixo custo. xxx O modelo de modelo de dominação implantado no Brasil na época subsiste hoje de maneira mais sofisticada. Antes exportávamos recursos naturais (minérios e produtos agrícolas) a troco de nada ou de migalhas do desenvolvimento europeu e, a partir do início deste século, norte-americano. Hoje exportamos, além destes recursos, dinheiro. Desde a proclamação da independência (1822), o Brasil vem contraindo dívidas com a Europa (e depois com os EUA), uma forma de construção e modernização do país que resultou em poucas benesses sociais mas sempre atraiu as elites econômicas e políticas nacionais pelo que resulta em benefício de uma camada privilegiada. A dívida externas brasileira é, atualmente, de US$ 120 bilhões, ou seja, 800 dólares para cada um dos 150 milhões de brasileiros. Durante 40 anos de República a dívida cresceu pouco, mantendo-se mais ou menos sob controle - e deu um salto gigantesco na época dos governos militares (1964/80), financiando o falso milagre econômico dos anos 70. Quando o presidente João Goulart foi deposto pelas Forças Armadas, em conspiração com empresários e banqueiros nacionais - e apoio dos EUA - a dívida externa era de US$ 3 bilhões. Quando os militares entregaram o poder político, 20 anos depois, a dívida havia ascendido a US$ 110 bilhões. xxx Numa linguagem didática, com números inquestionáveis, "A Dívida da Vida" trará, em imagens de impacto e fazendo com que todos possam entender a perversidade desta questão - evitando-se o economês e os jargões oficiais - num filme que, embora ainda em produção, começa a provocar polêmicas. A imagens da sociedade afluente - Octávio Bezerra mostrará e discutirá a questão dos recursos captados no Exterior desperdiçados no Brasil (Transamazônica, Angra I/II, obras faraônicas etc.) Se estenderá um leque - mostrando porque o endividamento do Brasil reflete na questão social, na destruição do meio ambiente, no empobrecimento da população, na impossibilidade de se pagar esta dívida imensa - difícil de ser visualizada inclusive em termos da quantidade de dinheiro necessário para saldá-la. Nota (*) Orlando Senna, 50 anos, jornalista, dramaturgo e cineasta, realizou entre outros filmes, "Iracema, uma transa amazônica" (74) e "Hitirama" (77) - ambos em colaboração com Jorge Bodanski; "Diamante Bruto" (1977) e documentário "Brás Cuba" (com o cubano Santiago Alvarez). LEGENDA FOTO 1 - As relações do que o brasil deve no Exterior e a miséria urbana cada vez maior vão ser explicadas, didaticamente, num documentário que está em fase de produção por Octávio Bezerra, o mesmo realizador de "memória Viva" e "Avenida Brasil". LEGENDA FOTO 2 - Pivetes na Avenida Brasil, Rio de Janeiro: imagens que fazem dos documentários de Bezerra um retrato sofrido sincero deste nosso país de final de milênio.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
28/07/1991

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