Bezerra faz "A Dívida da Vida" para que o mundo conheça nossos problemas
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de julho de 1991
Ao lado de entrevistas com os mais influentes executivos do Fundo Monetário Internacional, Clube de Paris e diretores dos bancos credores. "A Dívida da Vida" (Life Liability, em sua versão internacional) trará depoimentos de brasileiros - ministro Marcílio Marques Moreira, da Economia; jornalista Barbosa Lima Sobrinho, economista Conceição Tavares, deputada Benedita da Silva e outros. Entremeadas a estas opiniões, imagens tomadas em diferentes locais, dentro de uma linha didática, que a leitura da sinopse permite aquilatar. Com curiosidade - e oferecendo aos leitores algumas informações de como o tema tão atual da dívida externa será abordado neste documentário - vamos transcrever a seguir alguns trechos do pré-roteiro de Bezerra e Orlando Senna (*). Imaginem a força que estas imagens terão no filme, fotografado em cores e com o ritmo vibrante que Octávio Bezerra e seu montador Dadá Severiano sabem dar as suas realizações!
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CENA 1 - Um índio pende de uma árvore, enforcado. Nos últimos dois anos, 74 índios cometeram suicídio na reserva de Dourados (MT). A reserva tem uma população de 7 mil índios e os suicidas são, em sua maioria, jovens. Eles se matam por enforcamento ou por ingestão de agrotóxicos.
CENA 2 - Uma limusine Bentley desliza suave pela City londrina, deslocando-se entre edifícios com nomes de bancos e outras instituições financeiras internacionais. O reluzente automóvel pára defronte ao Lloyds Bank, arquitetura pós-moderna, impressionante estrutura metálica bordada a neon azul, um monumento à riqueza. O chofer abre a porta para um jovem executivo, que avança com sua pasta de couro em direção ao cenário futurista, espacial, perdendo-se no vai-e-vem de pessoas tão elegantes e cleans como ele.
CENA 3 - Um menino negro assalta um transeunte na praia de Copacabana, RJ, imobilizando-o com um revólver. O Brasil tem 58 milhões de crianças e adolescentes até 17 anos, dos quais 31 milhões (54%) vivem em estado de pobreza e 17 milhões (30%) em miséria absoluta.
CENA 4 - Agitação nas bolsas de valores de Londres, de Tóquio, de Nova York. A tensão estampada no rosto dos corretores que participam do pregão em contraponto com os grandes painéis eletrônicos, os telefones sem fios, fax, computadores.
CENA 5 - Uma operária nas dores de parto em um hospital sujo e sem equipamentos. Os rostos do médico e da enfermeira que cuidam dela também expressam tensão, angústia, dúvida, como se algo terrível estivesse para acontecer.
Que relação existe entre estas imagens tão distintas? Qual a ligação misteriosa e sinuosa que liga diretamente os centros de acumulação e distribuição capitalista com as misérias do Brasil?
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Em seguida, a estas primeiras imagens, há uma descrição sobre as relações econômicas da Europa e o Novo Mundo - especialmente a América do Sul, as profundas transformações no Velho Continente a partir do século XVI e a cobiça na América, com um modelo de colonização perverso, baseado no genocídio contra tribos indígenas em vários países. Imagens contundentes, focalizando o Nordeste, em sua miséria, mulheres grávidas trabalhando em condições insalubres. Cerca de 5 mil crianças menores de 5 anos morem por dia no Brasil em conseqüência de desidratação, sarampo, tétano, coqueluche, pneumonia etc. 60% destas mortes seriam evitadas com vacinas e tratamento de baixo custo.
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O modelo de modelo de dominação implantado no Brasil na época subsiste hoje de maneira mais sofisticada. Antes exportávamos recursos naturais (minérios e produtos agrícolas) a troco de nada ou de migalhas do desenvolvimento europeu e, a partir do início deste século, norte-americano.
Hoje exportamos, além destes recursos, dinheiro. Desde a proclamação da independência (1822), o Brasil vem contraindo dívidas com a Europa (e depois com os EUA), uma forma de construção e modernização do país que resultou em poucas benesses sociais mas sempre atraiu as elites econômicas e políticas nacionais pelo que resulta em benefício de uma camada privilegiada.
A dívida externas brasileira é, atualmente, de US$ 120 bilhões, ou seja, 800 dólares para cada um dos 150 milhões de brasileiros. Durante 40 anos de República a dívida cresceu pouco, mantendo-se mais ou menos sob controle - e deu um salto gigantesco na época dos governos militares (1964/80), financiando o falso milagre econômico dos anos 70. Quando o presidente João Goulart foi deposto pelas Forças Armadas, em conspiração com empresários e banqueiros nacionais - e apoio dos EUA - a dívida externa era de US$ 3 bilhões. Quando os militares entregaram o poder político, 20 anos depois, a dívida havia ascendido a US$ 110 bilhões.
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Numa linguagem didática, com números inquestionáveis, "A Dívida da Vida" trará, em imagens de impacto e fazendo com que todos possam entender a perversidade desta questão - evitando-se o economês e os jargões oficiais - num filme que, embora ainda em produção, começa a provocar polêmicas.
A imagens da sociedade afluente - Octávio Bezerra mostrará e discutirá a questão dos recursos captados no Exterior desperdiçados no Brasil (Transamazônica, Angra I/II, obras faraônicas etc.)
Se estenderá um leque - mostrando porque o endividamento do Brasil reflete na questão social, na destruição do meio ambiente, no empobrecimento da população, na impossibilidade de se pagar esta dívida imensa - difícil de ser visualizada inclusive em termos da quantidade de dinheiro necessário para saldá-la.
Nota
(*) Orlando Senna, 50 anos, jornalista, dramaturgo e cineasta, realizou entre outros filmes, "Iracema, uma transa amazônica" (74) e "Hitirama" (77) - ambos em colaboração com Jorge Bodanski; "Diamante Bruto" (1977) e documentário "Brás Cuba" (com o cubano Santiago Alvarez).
LEGENDA FOTO 1 - As relações do que o brasil deve no Exterior e a miséria urbana cada vez maior vão ser explicadas, didaticamente, num documentário que está em fase de produção por Octávio Bezerra, o mesmo realizador de "memória Viva" e "Avenida Brasil".
LEGENDA FOTO 2 - Pivetes na Avenida Brasil, Rio de Janeiro: imagens que fazem dos documentários de Bezerra um retrato sofrido sincero deste nosso país de final de milênio.
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