A Bossa continua Nova (ao menos na América)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 10 de abril de 1988
"Desfrutávamos daquela força,
luminosa como uma pedra de césio,
com espantosa naturalidade.
Aquilo era nosso, como os desenhos
animados são das crianças. A Bossa
Nova era o nosso desenho animado.
Como ele, harmoniosa e mágica.
Criativa e ágil. Colorida e diminutiva.
Íntima". (Ronaldo Bôscoli)
Fazem exatamente 30 anos. Foi em abril de 1958. Num modesto estúdio de 4 canais, o paulista Irineu Garcia que já vinha fazendo os primeiros discos com poetas dizendo seus poemas, reunia Elizeth Cardoso e o então jovem Antônio Carlos Jobim para a gravação de 12 músicas nascidas da parceria do pianista com o poeta Vinícius de Moraes, surgida dois anos antes, quando da montagem da peça "Orfeu do Carnaval" no Teatro Municipal. O disco levaria o nome de uma das canções inéditas da dupla - justamente a "Canção do Amor Demais" e o álbum se tornaria um clássico, merecendo três reedições posteriores. Entre os músicos convocados para a gravação estava um tímido violonista de harmonias diferentes chamado João Gilberto (do Prado Pereira de Oliveira), baiano de Juazeiro, então com 27 anos e que desde 1949 no Rio de Janeiro já havia integrado o grupo vocal Garotos da Lua. João costumava apresentar-se informalmente na boate Plaza (onde Johnny Alf era titular), ponto de encontro de músicos preocupados em aprimorarem o refinamento harmônico. João Gilberto impressionava com sua forma diferente de tocar violão, sua voz especial, fina, trabalhada. Mas a música da época, comercialmente bem sucedida, era uma forma diferente - bem mais forte - na linha de Orlando Silva e Francisco Alves, entre os grandes.
Assim foi preciso que uma cantora respeitada como Elizeth Cardoso, não no vigor de seus 38 anos, desse uma interpretação cool as músicas que inovavam em tudo - a partir do Chega de Saudade, para que o violão diferente de João Gilberto chamasse atenção dos ouvidos mais sensíveis, como já havia impressionado Tom & Vinícius. E entre os que perceberam a novidade estava Aloysio de Oliveira, então diretor artístico da Odeon, que decidiu apostar no seu estilo e, três meses depois - em julho, saia um 78 rpm com João tocando violão e cantando "Chega de Saudade" e, no outro lado "Brigas Nunca Mais" (Tom/Newton Mendonça). Ficou célebre a frase de um dos executivos de venda, ao ouvir o disco e se irritar, quebrando-o
- Isto não vai vender nunca. É fracasso puro!
Não foi. Tanto é que derrotou a mais importante renovação - ou revolução - dentro da música brasileira que, menos de quatro anos depois, conquistaria a América e que o mundo conheceu como Bossa Nova.
A espera ainda de uma bibliografia a altura da importância que representou para a MPB, e, em seus reflexos, para a própria música internacional (especialmente nos Estados Unidos) a Bossa Nova, trinta anos depois, continua Bela, vigorosa e importante. Seus principais responsáveis já passaram dos 40 anos, cruzam a barreira dos 50 e alguns - como Jobim são sexagenários, enquanto outros já morreram - como os letristas Newton Mendonça (1927-1960) ou o próprio Vinícius de Moraes (1913-1980). Alguns afastaram-se de uma militância maior - como Carlinhos Lyra ou Sérgio Ricardo, mas o importante, como diria o poeta Paulinho Cesar Pinheiro, é que a emoção sobreviveu...
Não só sobreviveu como está presente, aqui ou internacionalmente com gravação da melhor qualidade. Narinha Leão, 46 anos, a cada retomada fonográfica mostra porque sempre foi a madrinha morena e musa do movimento - mesmo quando cantando autores de outras fases ou revisitando clássicos da canção americana como fez em "Meus Anos Dourados" (Polygram, 1987).
Roberto Menescal, 50 anos, violonista, compositor e, sobretudo um dos líderes do movimento, após passar mais de 15 anos como diretor musical da Polygram, retornou a música - estimulado especialmente pela divisão de discos e shows com Narinha e, agora através da Synth Produções, realizando um dos mais belos discos do ano - "Bossa Nova... para fazer feliz a quem se ama" (CBS, abril/88), mais do que uma revisitação a BN, uma prova de que o que é bom resiste ao tempo.
Coincidentemente ao aparecimento deste álbum-documento, chega ao Brasil, em edição da SBK Songs, um importantíssimo elepê de outra personalidade fundamental da Bossa Nova - o violonista, arranjador e compositor Oscar Castro Neves, carioca, 48 anos a serem completados no próximo dia 15 de maio, desde 1966 residindo nos Estados Unidos. Unido por (seus irmãos Mário, Leo e Ico também fizeram parte da Bossa Nova), Oscar tem vários discos editados nos EUA, infelizmente sonegados do público brasileiro. Agora, felizmente graças a visão de Antonio Carlos Duncan, diretor da SBK, temos um de seus mais belos momentos - numa produção dividida com o saxofonista Paul Winter, um dos primeiros americanos a se apaixonar pela Bossa Nova, quando veio pela primeira vez ao Brasil em janeiro de 1962 (ocasião em que se apresentou também no Teatro Guaíra).
Arnaldo Solteiro, jornalista, editor de música da "Tribuna da Imprensa", é hoje pesquisador brasileiro que dispõe de maiores informações sobre a música brasileira no Exterior e, se tivesse o estímulo de encontrar um editor, por certo, poderia publicar um básico e necessário who's who dos brasileiros que, nestas últimas três décadas gravaram nos Estados Unidos. O que revelaria uma extensa discografia, pois enquanto no Brasil, a partir da segunda metade dos anos 60, a Bossa Nova foi criminosamente esquecida, levando seus principais nomes a emigrarem para os EUA ou, aqui ficando, desistirem de uma carreira popular (o que explica o desaparecimento de cantoras excelentes como Claudete Soares, instrumentistas como Maurício Einhorn e o próprio desânimo de Carlinhos Lyra, Sérgio Ricardo e outros), nos Estados Unidos continua a existirem gravações esplêndidas de músicos brasileiros que saindo do Brasil, na época da Bossa Nova, lá se firmaram.
Desde instrumentistas que, na verdade, nem chegaram a terem participação direta da Bossa Nova, como Laurindo de Almeida, 61 anos, ou Bola Sete (Djalma de Andrade, 1923 - 1987) até outros que nem chegaram a atingir o estrelato brasileiro na fase áurea da BN, consolidaram-se nos EUA. Por exemplo, o gaúcho Breno Sauer, que inspirado por Art Van Dame trouxe o vibrafone para a MPB e, por 3 anos, foi contratado de Palo Wendt na boite Marrocos (1960/63), vive hoje em San Francisco e recentemente gravou lp "Made In Brasil" (Pausa Records), com sua esposa, Neusa como vocalista e um grupo misturando brasileiros e americanos. Hélcio Milito, 50 anos, um dos fundadores do Tamba Trio (o mais importante grupo instrumental da BN), há 10 anos vive em Nova Iorque e, no final do ano passado lançou o seu elepê "Kilombo", que vem recebendo os melhores elogios e escalando as paradas de sucesso.
Gaúcho como Breno Sauer, Manfredo (Irmin) Fest, 52 anos a serem completados no próximo dia 13 de maio, vive desde 1966 nos EUA e seu último álbum, "Braziliana" (Rpm Records), está entre os mais belos que já ouvimos nos últimos anos.
Portanto, a Bossa Nova, longe de esmorecer, vive (ao menos nos Estados Unidos) o que faz com que se torne dos mais importantes o fato de, simultaneamente, termos a seleção "... para fazer feliz a quem se ama" e "Oscar"!
Bossa revisitada - Ronaldo Bôscoli, letrista inspirado e cronista da BN parceiro mais regular de Roberto Menescal, em seu texto delicioso define primorosamente o espírito deste "... para fazer feliz a quem se ama": contagia e urge - como prova este disco - os que nela tocam ou os que a cantam. De forma total ou em parte. Fluente e lógica, a Bossa Nova é como o feitiço. Encanta e envolve. Todo o espírito do seu criador - João Gilberto - está presente através de que leitura seja. Ele paira principalmente entre esses benvindos "estrangeiros" - João Bosco ("A Felicidade", "O Nosso Amor"), Moraes Moreira ("País Tropical" e "Chove Chuva"), referenciais a Jorge Ben - nome ausente do núcleo original da BN), Guilherme Arantes ("Nós e o Mar"/"Wave") e Ney Matogrosso ("Vagamente"/"Manhã de Carnaval").
Quanto aos demais - Nara Leão ("Corcovado/Insensatez"), Carlinhos Lyra ("Se é tarde me perdoa/Você e Eu/Saudade fez um Samba"), e Quarteto em Cy ("De Conversa/Tim-Tim-Por-Tim-Tim", "Samba de uma Nota Só/Falsa Baiana") além dos neonovistas Leny de Andrade ("Garota de Ipanema/Rio/Ela é Carioca") e Emílio Santiago ("Vivo Sonhando/Triste/Meditação") não fizeram senão percorrer com a esperada segurança de sempre as trilhas que eles fizeram, cantaram, foram e até pisaram.
Já em "Oscar!" (Living Music/SBK Songs - distribuição CBS), temos Oscar Castro Neves esbanjando toda sua sensibilidade em 10 canções novas (apenas uma, "Summer Winds", de Paul Halley, não é de sua autoria), que vão de "Rancho do Carioca" - com uma batucada sofisticada - a momentos do maior intimismo como "Rio Dawning", em diálogo guitarra/órgão com o cello de Eugene Friesen; ou na "Song for Joyce" (dedicada a esposa Joyce) no qual se contrapõe ao piano e guitarra que executa e o órgão nas mãos de Paul Halley. Antes de tudo um disco camerístico, sempre com formações ajustadíssimas com The Paul Winter Consort, há a presença do sax alto de Winter em "Onde Está Você?" (letra de Luevercy Fiorini), que foi há 26 anos passados a consagração no voz única de Alaide Costa (RJ, 8/12/1935), ao participar do Fino da Bossa, no Teatro Paramount.
E Alaíde Costa, a mais camerística voz da Bossa Nova? Onde está você?
LEGENDA FOTO 1 - Oscar Castro Alves: dos EUA, com a bossa de sempre.
LEGENDA FOTO 2 - Nara, a musa e a bossa de sempre; "Corcovado" e "Insensatez".
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