Emoções nos cantos e sons de Airto e Flora
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 14 de abril de 1988
A própria Flora não conteve a emoção. No sábado, 9, na metade do show no Teatro Guaíra, quando ia cantar "Good Morning Heartache" (Ervin Drake/Irene Higginbotham - Dan Fisher), clássico que Billie Holiday (1915-1959) imortalizou, sua filha, Diana, 16 anos, pela primeira vez, subiu num palco e ao seu lado, cantou a segunda parte. Uma voz segura, maravilhosamente afinada, trazendo uma emoção profunda não só na platéia mas entre os próprios músicos que a acompanhavam.
Este foi, realmente, o momento alto da apresentação de Flora no Guaíra, num espetáculo que merece ser noticiado para que, se um dia, alguém se interessar em escrever sobre os grandes momentos musicais ali ocorridos, encontre ao menos um registro.
O espetáculo abriu com "Schoffell", um novo tema de Garry Meek, extraordinário saxofonista, jovem virtuose novaiorquino que Flora fez questão de convidar para esta temporada. O segundo número também era desconhecido do público: "Partido Alto" de José Bertrami, do grupo Azymuth (brasileiros, mas mais famosos na Califórnia do que entre nós). "Nothing will be as it was", a versão que R. Vincent fez para "Nada Será Como Antes", começou a aquecer o show, que entraria em ebulição com "Esquinas" (Djavan) - gravação que, no ano passado, valeu a Flora a indicação ao Grammy. Depois de "Good Morning Heartache" - o grande ponto jazzístico-emotivo - veio o destaque de Airto: informal, falando descontraidamente, lembrando seus tempos de criança, quando ganhou o primeiro pandeiro, "de plástico, que nem fazia som e que acabou sendo quebrado na minha cabeça por um colega" - ele mostrou porque é, há mais de 15 anos, um instrumentista que eletriza platéias em todo o mundo: um instrumento simples, aparentemente de pequenas potencialidades sonoras, torna-se uma verdadeira bateria sonora em suas mãos mágicas, conduzidas com maestria única.
A sua bela voz - foi cantor adolescente no Cineac-Rádio de Souza Moreno, na Rádio Clube Paranaense, no início dos anos 50 e, mais tarde, crooner do King's Club (na Rua Carlos de Carvalho) e orquestra de Osval, Airto penetrou na espiritualidade que tanto o conduz, ao transformar "pontos" umbandistas num ritual com a força de um ato litúrgico - o que, aliás, não é novidade, para quem, como ele realizou, em dezembro de 1983, a "Missa Spiritual" na catedral de S. Martin, em Colônia, RFA, a frente de uma grande orquestra e coral, com arranjos de Gil Evans (1913-1988), que foi um de seus maiores amigos.
"Liliam", um tema de Milton Nascimento, também teve uma bela vocalização de Airto - mostrando assim este lado de seu talento nem sempre devidamente reconhecido.
Outro grande momento jazzístico da noite foi a interpretação de "Midnight Sun" (Johnny Mercer/Sonny Burke/Lionel Hampton), clássico imortalizado por Ella Fitzgerald, que Flora escolheu para tema-título de seu primeiro lp editado no Brasil (Sigem, abril/88, Cz$ 800,00, finalmente nas lojas). Com uma harmônica presença instrumental - e o solo dolente do saxofonista Gary Meek - Flora deu uma leitura emocionante a este tema maravilhoso.
Depois Flora falou dos tempos do Return To Forever, com Chick Correa que homenageou interpretando "Windows". Os aplausos foram intensos e o espetáculo não poderia acabar. Assim, ofereceu uma composição inédita, que Gary Meek terminou há apenas uma semana: "Atingida por um Raio".
Ao final, como número extra, "20 Anos Blues" (Suely Costa/Abel silva), que também lhe valeu a indicação ao Grammy: terminava um dos espetáculos musicais mais bonitos do ano. Na saída, os que assistiram Flora e Airto em 1986, divergiam apenas em relação ao qual havia sido mais belo e emotivo. A resposta mais sensata foi de uma jovem loira, 17 anos:
- Bobagem esta questão: ambos em sua emoção. Só espero que eles voltem a cada ano.
Nós, sinceramente, também assim desejamos.
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