Um dos projetos mais importantes a serem lançados em CD nos Estados Unidos dentro de alguns meses terá sons curitibanos: pássaros cantando nos bosques de Santa Felicidade, águas do Saltinho e mesmo "ruídos" "capturados" nas noites do Boqueirão. Há seis meses, quando aqui esteve trazendo o então recém adquirido (no Japão) gravador DAT, com microfones da maior sensibilidade, Airto Guimorvan Moreira fez estes registros, conforme registramos com exclusividade. Agora, nos 10 dias que passou novamente com sua família - a mãe Zelinda, a irmã Odone, o cunhado Arlindo Godoy e os sobrinhos Jefferson e Handerson o mais notável percussionista brasileiro que há 24 anos vive nos Estados Unidos pode, calmamente, trabalhar em detalhes, "extremamente pessoais", para um projeto que o fascina: uma gravação com aquilo que chama de música curativa, numa fusão de sons de natureza e toda magnitude que ele consegue produzir em múltiplos instrumentos de percussão, mas a voz-instrumento de Flora Purim, sua esposa e companheira de idéias espirituais, que por três anos superou monstros sagrados como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughn como a melhor cantora de jazz no jazz pool da Down Beat e Playboy. Mais espiritual do que nunca, numa dieta que exclui bebidas, a carne as gorduras - e uma prática diária de exercícios num dos modernos "GYM" nas proximidades de sua casa na praia de Santa Barbara (200km de Los Angeles, 50 mil habitantes) lhe dão uma aparência jovial - que nem de longe mostra seus 50 anos completados no último dia 5 de agosto. Um CD/Cassete recém-lançado nos Estados Unidos - "Planet Drum", produzido por Mickey Hart, ex-Grateful Dead - um dos melhores amigos de Airto (juntos fizeram, entre outras coisas, uma trilha sonora alternativa para o filme "Apocalipse Now", de Francis Coppola, que lançaram autonomamente), já dá um pouco da idéia do novo som que Airto vem se dedicando: em nove das 13 faixas desta produção feita basicamente com sons percussivos e efeitos vocais, Airto (e Flora) são co-autores dos temas, desenvolvidos não só por Mickey/Art, mas também por outros músicos criativos como Sikiry Adepoju, Babatundle Olatunni, Zekir Hussein, T. H. "Vikku" Vinayakram - cujos nomes já identificam as origens terceiromundistas que os aproximam num trabalho que se reflete numa sonoridade para fazer mergulhar o ouvinte mais sensível, ao longo de temas como "Udu Chant", Island Groove, "Light Over Shadow", "Dance of the Hunter's Fire", "Temple Caves", "The Dancing Sorceer" e "Mysterious Island". Airto executa instrumentos cujos nomes em inglês já mostram a sua inventividade na busca de uma sonoridade sempre reciclada - como "shakers", "woodt blocks", "flor tom", címbalos, "bird whistles", tamborim, além do "body percussion" - ou seja, ruídos que extrai do próprio corpo. Mas numa faixa, "The Dancing Sorcerer" - parceria com o indiano Zakir Hussein (tabla), seu solo é apenas em berimbau. Flora Purim tem um solo impressionante em "Evening Samba", definido como uma fusão brasileira-angolana, na qual Airto condena mais de 12 diferentes instrumentos. Gravado em estudos com a mais notável tecnologia, destinado a uma faixa especial de público, "Planet Drum" (que por suas características, não tem a menor possibilidade de ser editado no Brasil) é produção de uma etiqueta alternativa - The World - e teve condições de registro. Por sua participação neste projeto, Airto e Flora abriram mão de parte do cachê que normalmente cobram para, em troca, Mickey Hart garantir a edição do projeto pessoal de Airto - ainda sem um título definitivo, mas que, ele próprio admite, "não chega a ser música - embora haja três canções-temas - mas sim uma sonoridade que venho desenvolvendo ao longo de toda minha vida". Nisto há um lance profundamente espiritual - que os remete à sua formação kardecista, que herdou de seu pai, o médium José Moreira (1909-1983), um catarinense humilde, da cidade de Itaiópolis, SC, (onde Airto nasceu), "mas que ao longo de toda sua vida, de modesto sapateiro, teve sempre uma profunda vivência espiritual, voltado a ajudar ao próximo". Justamente por esta formação e profunda fé espiritual - num trabalho que sente na energia e força que consegue dar em sua profissão como um dos mais admirados instrumentistas-compositores contemporâneos - é que levou Airto a, nos últimos anos, se voltar a projetos bem mais especiais do que o simples sucesso comercial. Assim aconteceu com a sua "Missa Espiritual" - que tivemos a emoção de ver nascer, em seus primeiros esboços, em nosso estúdio Vinícius de Moraes (*), a esta obra em progresso, que será acompanhada de um texto em que Airto falará de sua vida, de suas vivências espirituais, expondo idéias e conceitos. Um trabalho de tamanha dimensão, que o escritor Jay Stevens, escolhido para fazer a redação final, sentiu as potencialidades do mesmo se transformar num livro autônomo - em fase de elaboração - e que com o título de trabalho de "We're not Alone", terá lançamento por uma das maiores editoras americanas, a Harper's. Nota (*) "Missa Espiritual - Airto's Brazilian Mass", idealizada, composta e executada por Airto Moreira, teve sua estréia mundial na Igreja de St. Martin, em Colônia, República Federal da Alemanha, no dia 11 de dezembro de 1983. Editada em LP pela Harmonia Mundi (apenas na Alemanha) e gravada em vídeo, foi apresentada, em cadeia nacional, pela televisão é educativa americana no Natal de 1983. Infelizmente, a idéia de produzir sua apresentação no Teatro Guaíra, embora aventada em uma reunião com o superintendente Constantino Viaro, não prosperou a este espetáculo místico-espiritual religioso continua inédito. Da apresentação única ocorrida em Colônia, participaram o guitarrista Philip Catherina, o tecladista Marcus Silva, os percussionistas Trilok Gurru e Fredy Santiago, além de uma grande orquestra. Os arranjos foram do notável Gil Evans, já falecido, que era o arranjador favorito de Miles Davis. LEGENDA FOTO 1 - Capa de "Planet Drum", o último registro com a música personalíssima de Airto - e participações especiais de sua esposa, Flora Purim. LEGENDA FOTO 2 - Airto Moreira, ao lado do sobrinho Jefferson, no Aeroporto Afonso Pena, ao retornar aos Estados Unidos. Na semana passada, já estava em Istambul e na próxima terça-feira inicia excursão pela Polônia.

Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:

Veiculo: Estado do Paraná

Caderno ou Suplemento: Almanaque

Coluna ou Seção: Tablóide

Página: 3

Data: 20/10/1991

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