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Aramis

Hermínio, uma autobiografia!

Ele é poeta, letrista, produtor fonográfico, diretor de shows, bom amigo e excelente copo. Tem o dom de fazer coisas bonitas em tudo que se propõe, seja uma música, um show, um livro. Seus amigos espalham-se pelo mundo e é um dos batalhadores pela cultura de raízes, valorizando tudo que é brasileiro da gema. Já houve até quem o quisesse como Ministro da Cultura ou presidente da FUNARTE - sem falar na Secretaria da Cultura do Rio de Janeiro. Mas ele prefere ser apenas um agitador cultural lutando pela MPB, fazendo projetos belíssimos - como o Bello de seu nome. Ele é Hermínio Bello de Carvalho, 52 bem vividos anos, que chega hoje à Curitiba para, no domingo, autografar seus livros "Mudando de Conversa" (crônicas, artigos, cartas, etc., ligados a MPB) e "Bolha de Luz" (poesias). Será amanhã, à partir das 10 horas, na livraria Dario Vellozo. Na segunda-feira, 10, vale a pena fugir do serviço para assistir sua palestra, a partir das 15 horas, no auditório Paul Garfunkel, da Biblioteca Pública. Ouvir Hermínio é como ouvir uma bela canção. Daquelas que ele sabe fazer - tendo parceiros que vão de Cartola e Pixinguinha a dona Yvone Lara. "Só duas laudas e meia, malandro? E onde fica a minha conhecida prolixidade escrevinhadora, logo eu - esse papagaio matraqueador que nunca teve o poder da síntese - ser aprisionado em laudas? Vamos lá: nasci em Olaria, perto da Rua Pixinguinha, há 47 anos bem passados. Vamos precisar as coisas: era em 28 de março, seu Ignácio era calista e sua esposa, a velha Chica, uma ex-empregada doméstica. Irmãos vários, com os abortados parece que iam a 11 ou 13 - uma coisa assim. Eu o menor, usando cachinhos até os 5 anos e já fantasiado igual pelo menos durante três carnavais seguidos, aproveitando as fantasias dos irmãos mais velhos. Só agora poderia comemorar 20, 10, 15 ou 30 anos de algumas vivências específicas. Há vinte anos lancei meu primeiro livro e cometi meu único casamento semi-oficial. Há trinta freqüento os mais duvidosos botequins cariocas com extrema galhardia e pose. Há quarenta anos vivo em estado de música (Rádio Nacional, Orquestra Sinfônica, ensaios de coro orfeônico, carnaval, retretas, ouvido colado ao rádio, tudo), e posso exibir com extrema vaidade uma folha de serviços assim resumida: fui conhecer Getúlio pelas mãos de Linda Batista, lá em Petrópolis; tenho retrato ao lado de Carmem Miranda na antiga boite Vogue, no dia do aniversário de Ângela Maria; conheci pessoalmente Ingrid Bergman, Pastora Pavón ("La Nina de los Peines", inspiradora de "La Teoria y Juego del Duente" de Garcia Lorca); Atahualpa Yupanqui, Segóvia, Louis Armstrong, Strawinsky, Villa-Lobos e quem mais se possa imaginar. Em 1958, Rádio MEC pelas mãos de um mestre: Professor Mozart de Araújo. Expulso em 1968 pela Bendita. Centenas de programas culturais apagados por uma revolução idiota. Animação cultural nas veias, desde que fui Presidente do Centro Cívico Carlos Gomes, Escola 3 - 3 Deodoro. "Les Petits Chanteurs de la Croix de Bois", eu embevecido na platéia do Municipal. Queria ser artista, cantor, palhaço, noivo, Presidente da República. Misturando tudo e fazendo um flashback: 1951, Rádio Nacional: entrevistando Marlene, Dalva, Emilinha, Carmélia Alves, num estilo que primava pela falta de estilo, meu querido Millôr. Começo a ficar grandinho. E sozinho pelo mundo. Saio de casa, vou à vida ser contínuo de uma construtora. Saio de lá para ganhar o dobro, com auxiliar de escritório. Morei 23 anos nessa empresa de navegação que depois viraria uma multinacional, e quando me libertei havia feito já as seguintes coisas: vice-presidente de uma associação brasileira de violão; aprendido violão e integrado um conjunto ao lado de Turíbio Santos, Nicanor Teixeira, Jodacil Damasceno e outros cobras. Músico medíocre. Depois o vírus da música popular e Villa-Lobos em Paris, Espanha e Portugal, depois Estados Unidos. Turíbio Santos ilustrando em Paris e morto de vergonha de minha terrível e ininteligível pronúncia. Já fiz vexames em português, francês, italiano, grego, inglês e espanhol. Pela primeira casa já passara Glauce Rocha, Elis Regina, Elizeth Cardoso, Moreira da Silva, Sarah Vaughan, Narciso Yépes, Jim Hall e todo mundo que se possa imaginar. À Europa fui a primeira vez em 1965, a última em 1978. Aos Estados Unidos, agora em maio pela terceira vez. Encanta-me, tenho lá uma negra que mora em Los Angeles e vai para a cozinha fazer comida de Lousianna para mim, e nas horas vagas vai para o piano e é um gênio chamado Nellie Lucther. Em 1975 faço quarenta anos cumprindo uma irremediável vocação para vice-presidente: sou eleito para a diretoria da SOMBRÁS, grandes lutas pela moralização do direito autoral, ameaças de pancadaria na porta do OMB (eu no velho vício da panfletagem, coisa bastante exercida na época da repressão). Lembro-me de um início de vida artística que quase sempre me esqueço de contar: programa cultural numa emissora sediada dentro de um quartel, eu fazendo tocar Rameau e ouvindo nego levar bordoada. Cabelos brancos, teimando em aparecer, barriga para frente, bundinha arrebitada e lá vou eu pela vida. Compositor sim, alguns festivais, parcerias com Pixinguinha, Cartola, Ismael Silva até Baden e Martinho (estes mais recentes). Um disco cantando (a crítica odiou), viro cadeira no Conselho de Música do Museu da Imagem e do Som e sou entronizado na Academia de Letras de Três Rios, isso é que é glória! Albino Pinheiro cria o Seis e Meia e me chama para ficar do seu lado, brigo com a antiga FEMURJ, vou para a FUNARTE fazer o Projeto Pixinguinha, e faço mais e mais projetos e consigo não deixar que me rotulem de nada. Vou para a TVE fazer um programa chamado "Água Viva", onde só levo a marginália que a Globo tem medo de programar, gente como Roberto Silva, Alaíde Costa, meus saudosos Sidney Miller e Abel Ferreira, essa gente linda. Lesado aqui e ali por editores e gravadoras, não conseguiria sobreviver agora com os 30 mil que ganho através do ECAD. Isso me dá vergonha. Lesado recentemente por uma ex-conhecida cantora, coisa que também me envergonha. Devo muito do que sou a um cara que morou aqui perto da Boca Maldita, um pintor, chamado Walter Wendhausen. Meu caráter foi moldado pelo de Eneida, aquela que ditou seu epitáfio: "Essa mulher nunca topou chantagem". Tenho uma máxima de Salomão que aplico na minha vida: "A mentira é a verdade provisória". Gosto de viver, gosto de ser brasileiro e amo sobretudo ser um carioca. Sou uma pessoa que passou pelo bairro da Glória, foi para a Penha, voltou para a Glória (morou quase ao lado da legendária Taberna, onde afinal descobriu Clementina de Jesus), e agora pousou em Botafogo - e a última etapa jura que não vai ser no Jardim da Saudade. É íntegro, bom caráter, honesto e trabalhador. Assina embaixo sem nenhuma vergonha esse nome de velho que carrega e um coração que teima em soltar pipa, jogar pião, marraio feridô sou rei. PS - Samambaias, adora samambaias."
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
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08/08/1987

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