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Aramis

ELIS REGINA, 10 ANOS DEPOIS

O INÍCIO - "Bom, o meu nome indica já que meu pai era um bom comerciante, né? Já me batizou com ele. Estava imaginando provavelmente, uma fachada de teatro, no dia em que nasci. Sou, de nascimento, Elis Regina Carvalho Costa, sem "de" nem "da". Não tenho direito às vantagens do nosso "phone". Sou a primeira filha de um casal, "seo" Romeu e dona Erci. Nasci em Porto Alegre, a 17 de março de 1945, no meio de uma crise de leite por causa da Guerra da Itália - ou da entrada do Brasil na Guerra. A cidade era cercada por uma série de comunidades alemãs. Com a entrada do Brasil na guerra, Porto Alegre ficou bloqueada e, no meio dessa confusão, eu nasci. Quer dizer: já nasci num "rolo" considerável! Vivi durante muito tempo no bairro dos Navegantes - operário, com muitas fábricas e localizado bem perto do Rio Guaíba. Uma das primeiras que me lembro de ter visto foi o símbolo da Coca-Cola, que ficava na esquina da minha casa. Meu pai trabalhava numa fábrica de vidro, na seção de expediente - que não sei realmente o que significa, não tenho a menor noção. Minha mãe ficava em casa, fazendo o que toda mulher sempre fez: lavando, passando, cozinhando, tomando conta de filho". O TEATRO Nos últimos anos de sua vida Elis preferiu apenas fazer shows em teatros. Em Curitiba esteve uma vez no Paiol e várias no Guaíra, onde, em setembro de 1978, apresentou o espetáculo "Transversal do Tempo", roteiro e direção de Maurício Tapajós e Aldir Blanc. "O teatro, pra você, é ainda a maneira de ter comunicação direta com o público? - É a única maneira. Acho que não inventaram à toa esse tabladinho aí, não. É a forma mais perfeita de comunicação. É o chamado colóquio mesmo, você coloca e o cara responde. Vai e volta, vai e volta. É uma coisa humana, né? Não tem luzinha vermelha que acende, botãozinho que aperta, aí você faz assim (imita o gesto), não é. Aí de novo, você faz o sorriso e não é nada daquilo, é um truque, a mentira. Você passou a fazer teatro regularmente a partir de? - Não, foi em 1971-72. Teatro da Praia, Maria Della Costa, Circuito Universitário. Depois voltei, fiz Maria Della Costa outra vez. Aí o Casagrande - estava esperando o Pedro. Quer dizer, quando eu falo que fiz Maria Della Costa, e o TUC e o não sei o quê, sempre em ponto de partida para uma tournée pelo país, né? Você faz um espetáculo e viaja. O PRIMEIRO FESTIVAL Elis fala de sua participação no I Festival de Música Popular Brasileira promovida pela TV-Record (Guarujá, SP, 1965), na qual denunciou uma maracutaia que visava beneficiar um cantor famoso que depois se revelaria dedo-duro de seus colegas. "Foi, no cassino da praia de Guarujá. No júri, tinha Franco Paulino, Eumir Deodato, Sérgio Cabral. Tinha uma porção de gente que hoje em dia eu conheço melhor. Aí, sabe aquelas coisas que parecem quase missão? Você chega pra fazer uma divisão mesmo. O Festival era patrocinado pela Rhodia. A Rhodia tinha feito um contrato com um cantor, pra excursionar por todo o País, absolutamente convencida de que o cantor ia ganhar o Festival. Se ele não ganhasse, ela ganhava por ele. Agora, eu dei o azar dessa trama e fui pra imprensa. Falei: "Fulano de tal vai ganhar o Festival, porque a Rhodia vai impor essa porcaria. Quando, na realidade, platéia jurados e porcaria tá querendo "Arrastão". Não tá conseguindo acontecer "Arrastão" porque a Rhodia tá querendo botar seu Fulano de tal como vencedor, com uma música ridícula, sem expressão. Música que foi feita para ilustrar o espetáculo de desfile de moda". Aí, eu desnorteio. Os caras não percebem que o cantor não tem a menor importância, no caso. O importante é a corrupção que você tá combatendo. Aí, ficou, dividiu-se, né? Amigos do cantor pra lá, amigos da cantora pra cá. Entre os amigos do cantor havia um jornalista - que aliás era autor do espetáculo, texto, roteiro e direção, produtor daquela porcaria - que começou, então a fazer uma campanha de solapamento das minhas bases. Coincidentemente, casou-se comigo alguns anos após (*) e continuou. Quer dizer: então eu estou passando alguns anos pagando por ter dito que a Rhodia tava comprando o júri. Ou tava tentando dar um golpe no júri, pois ia dar. A gente sabe que dá!" Quem era o cantor? - Ah... O "falecido" Wilson Simonal. Desculpe, não é nenhum desrespeito. Eu acho até que estou sendo... falar o nome dele já é muito, hoje em dia. Depois que a gente descobriu quem realmente ele é. Quer dizer: aí você começa a perceber que existe uma luta pelo poder até dentro da MPB. Que há seres liberais, que há seres totalitários e que eles apelam pra qualquer coisa pra se colocarem no poder. E que, quando são ameaçados por pessoas mais fracas - em termos de poderio econômico, financeiro ou qualquer coisa -, mas mais talentosos, e mais habilidosos, e safas né, vivas, que sabem pegar os elementos e fazer da coisa quase que uma ação política, eles começam a detonar noutras áreas. Então eu passei a ser mau caráter, eu não vejo meios pra chegar a certos fins. Mas quem não vê são eles! Eles matam, por dinheiro. Não tenho nada a ver com isso! Eu vivo do meu trabalho. Eu trabalho sozinha, com a minha turma, com a minha gente. Em nada do que eu faço, alguém deixa de receber o seu trabalho, no que diz respeito à mão-de-obra e aos proventos dos seus direitos. Sou uma pessoa absolutamente tranqüila em relação a isso, inclusive encabeçando brigas de classe violentíssimas. Chegando em nível de Ministério e encarando Ordem dos Músicos e pegando Sindicato de Músicos que por incrível que pareça tá contra a gente, tá a favor do músico. Quer dizer: essa coizinha esse grupeto de gente - que graças a Deus o tempo se encarregou de mostrar muito bem quem era, num determinado momento tinha poder, tinha acesso à informações (afinal, eles tinham trabalhado pra isso, né?) e criava as imagens que bem lhe interessasse criar. Nota (*) Ronaldo Bôscoli, 60 anos, jornalista, letrista da Bossa Nova, seu primeiro marido. Posteriormente, ela casaria com o pianista e arranjador César Camargo Mariano, do qual se separou pouco antes de morrer. TELEVISÃO Elis Regina fala de suas experiências na televisão. -"Comecei pela TV - Rio. Olha, a reação das pessoas com a televisão não é boa. Não é legal. Eu acho quase à loucura de dizer que cara que gosta de televisão precisa ser guardado com camisa de força. Quem gosta de trabalhar em televisão é doente. Manda pro Juquiri! Pode mandar, porque não bate bem. Não é legal. Minha experiência foi desastrante, mesmo, a palavra é essa. Até hoje se você me chamar pra fazer um programa de televisão, eu vou. Agora, eu suo na mão, fico com a mão gelada, passo mal, o estômago embrulha, eu não sei o que é. Não gosto". Quanto tempo você ficou na TV-Rio? - "6 meses. Na Record fiquei dois anos. A Record é flor de cheiro, perto das outras. Foi o período mais tumultuado da vida de todo mundo, mas era uma estação antiga, uma coisa quase que provinciana, assim. Esquema paternalista de trabalho, ainda um certo culto ao artista consagrado, respeito pra com a produção do cara. Hoje em dia, as estações de televisão é que são as importantes. Elas é que são as grandes estrelas. E o cara que entra, entra pra preencher espaço e cumprir funções. Por isso é que não dá pra fazer televisão. Eu não sou gado, não tenho vocação pra ser tocada. "Uh, xu, pra lá", não. E independente disso música, hoje em dia, tá servindo de pano de fundo pra reportagem. Então você fala do bebê de proveta e entra um gaiato cantando qualquer coisa que tenha relação. Eu tenho idade para isso? Só pra informação, você ficou na Globo quanto tempo? -Dois anos. Vamos mudar de assunto. Tá me dando coceira. Não é brincadeira, tá me dando coceira mesmo!" MARCOS LÁZARO A partir do disco "Ela" (Philips, 196), Elis mudou radicalmente sua forma de produzir os discos, livrando-se também de um empresário artístico tão famoso quanto polêmico. "A gente começou a se autoproduzir. A partir de "Ela". Eu sai de tudo. E acho que de todas as saídas, a mais importante, por incrível que pareça, foi ter saído do Marcos Lázaro. É uma pessoa que consegue tirar a dignidade da Amália Rodrigues. Ele conseguiu tirar a dignidade da Mercedes Sosa, pomba? Botou a Mercedes Sosa cantando numa churrascaria, no Rio de Janeiro! No meio de um bando de bêbados, panfletários, enchendo o saco dela! O Marcos Lázaro é um químico ao contrário. O que ele toca se transforma em bosta na mesma hora. A MÚSICA POPULAR Aqui, Elis fala sobre a MPB. Externa opiniões sobre a Bossa Nova, à canção dos anos 90 - época em que começou, menininha, a cantar no Clube do Guri da Rádio Farroupilha, em Porto Alegre. - "Eu desconfio muito dessa ingenuidade da Bossa Nova. Não era a bossa nova que era ingênua, era o País que era ingênuo. Acho, que, após vários embates, você fazendo uma peneirada de "n" períodos de música e de arte no Brasil, tanto a bossa nova, como o cinema novo, como toda uma literatura nova, de gente muito nova, uma arquitetura nova, apareceram em decorrência de um homem novo. Um tipo novo de homem que a gente teve a comandar a gente, e que se chamava Juscelino Kubitschek de Oliveira. Ainda dizem que ele cometeu muitos deslizes. Era um ser provinciano que, de repente, sentiu a necessidade de que suas filhas dançassem de debutante em Versailles. Tinha essas pobrezas, essas fraquezas de homem de Interior que, de repente, tá com o poder na mão. Mas se você fizer uma repesagem de tudo, tudo de novo que aconteceu neste país, tudo o que respira ainda, até hoje, saiu do "nihil obstat" de Juscelino Kubitschek. Ele foi a única pessoa, neste país, que nunca usou a palavra "não" contra os adversários. Houve dois levantes, e foi o único governo brasileiro que não teve um preso político. Sabe acho que aí, nessa hora, dá até pra você ser ingênuo. Não dá pra ser ingênuo mais é hoje! Tá deslocado o amor, o sorriso e a flor. Sabe? Hoje você engole que você vale menos que o cheiro de um cavalo. E daí? Não vai engolir? Vai fazer o quê? Engole! Engole por 33 anos e um título de eleitor em branco. É, pô, e daí? E aí vai pro palco cantar o quê? Que o umbigo é lindo? Vai pro palco cantar que tô de saco cheio. Como cidadã não estou sendo respeitado, como artista não sou respeitada. Porque mulher continua sendo tudo o que sempre foi, minha mãe, minha avó. Tem umas três ou 4 poderosas. O poderio econômico faz com que elas sejam independentes e façam meia dúzia de coisas. Mas é mulher! E quando se arvora muito de pato e ganso - como dizia minha avó fica logo sendo chamada de lesbiana. Sabe? Lugar de mulher é em casa. Você mulher, você não vota, não é respeitada como artista. Vai rir do que? É hiena, também? Ah... Sabe, eu acho que, se eu não tiver com o meu pezinho plantado, até ligado ao problema das pessoas que dão o meu sustento - porque a platéia é que dá o meu sustento, se eles não forem ao teatro eu não vou ter do que comer. Se não comprarem meu disco, não tenho do que comer. E não vou me preocupar com eles? Existe uma relação. Se eu não tiver preocupação com essas pessoas que me compram, o que vai acontecer? Se eu não procurar, de uma certa forma, chegar perto deles e dirimir algumas dúvidas, atenuar certos problemas e limitar - ou, sei lá, procurar preencher - certas carências, o que vai acontecer? Não tem memória. O país tem memória, não tem a história registrada. A história que está registrada não é digna de credibilidade. Se a gente, pelo menos, não tentar fazer alguma coisa com o pé no chão, quando que vai se ter? Daqui a pouco a gente já não tem nem mais pá! O Chão já tá sumindo".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
19/01/1992

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