É CARLINHOS LYRA
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 15 de março de 1973
QUANDO se diz que a bossa nova foi o movimento mais importante verificado em nossa musica popular nos últimos anos, o que leva em conta não é apenas a modificação que ela provocou nos rumos da MPB, mas a possibilidade que abriu para que aparecessem alguns dos nossos melhores compositores de todos os tempos. Carlos Lara, sem dúvida nenhuma, é um deles. A sua importância não se restringe aos limites da bossa nova: o seu nome, historicamente, é tão importante quanto os mais importantes nomes da música popular brasileira". (Sérgio Cabral, critico de música popular).
Inverno de 1962. Um grupo de estudantes deixa a cantina da Faculdade de Filosofia, após mais um "sarau" dominical. Meia-noite, após muitos "Cubas-Libres" e "Hi-Fi", mesmos os mais tímidos estão acorajados a cantar. É a voz aí-
nada do alto" Mato Grosso" (José Otávio Guizzo), hoje dono de uma das mais prósperas bancas de advocacia de Campo Grande na época vice-presidente do (Centro Acadêmico Hugo Simas) comanda o coral , com os amigos Romão, Euclides Pio:
Acabou o nosso carnaval
Ninguém ouve cantar
[canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudade e cinzas
Foi o que restou.
xxx
A Bossa Nova começava a chegar ao Paraná. Seus teóricos estavam cheios de idéias, com argumentos para combater os mais reticentes a música de João Gilberto, Tom ou Carlos Lyra. Não era apenas a Bossa Nova: paralelamente, o cinema novo, com todas as dificuldades e falhas da arte de vanguarda em País subdesenvolvido, ia crescendo. O moçambicano Rui Guerra, radicado no Brasil, voltara da França cheio de idéias para realizar um filme (ainda com fortes traços de "nouvelle vague") que mais tarde seria tomado como marco do cinema novo: o longa-metragem "Os Cafajestes" (1962.
Um clima de euforia caracterizava a juventude. Um entusiasmo pelas atividades culturais, uma redescoberta da sensibilidade e do romantismo em nosso cancioneiro. Nas letras simples e na voz de João Gilberto:
Era uma vez um lobo mau
que resolveu jantar alguém
Estava sem vintém mas
[arriscou
E logo se estrepou
Um chapeuzinho de maio
Ouviu buzina e não parou
Ou nas letras mais profundas
como a que marcava...
(24/4/1961) a primeira gravação de um cantor chamado
Geraldo André:
Quem quiser encontra amor
Vai ter que sofrer
Vai ter que chorar
Amor assim não é amor
E sonho, é ilusão
Pedindo tantas coisas
Que não são do coração
xxx
Tentava-se em vão localizar as origens da Bossa Nova. Para uns, a primeira gravação de "Rapaz de Bem"" de Johnny Alf, em 1965. Para outros, as interpretações de Lúcio Alves e Dick Farney, de "Teresa da Praia", um ano antes. Outros, mais radicais, estabelecendo as raízes há 30 anos, em Mário Reis e sua voz fina mas harmoniosa. Para Carlos Lyra, uma das primeiras manifestações da BN foi a sua música "Menina", gravado ainda em 78 rpm por Silvinha Teles (Odeon, 1956), trazendo no outro lado "Foi a Noite". De Tom Jobim e Newton Mendonça (1927-1960).
Pobre samba meu
Foi se misturando
Se modernizando
E se perdeu
A porta do teatro em Copacabana, o cartaz prometia: "O grupo universitário hebraico brasileiro apresenta hoje reunião bossa-nova". Sem saber, Moisés Fuks, o estudante que organizava o espetáculo, estava criando o nome para aquele movimento de renovação que começava a nascer na música popular brasileira. Os "bossa-nova" eram Carlos Lyra, a cantora estreante Nara Leão, o baterista João Mário, o cantor Chico Feitosa (Chico Fim de Noite).
Há quem discorde de que tenha surgido naquela noite num modesto "show" universitário em 1958 - o termo Bossa Nova. Sérgio Porto o inesquecível Stanislaw Ponte Preta - tinha outra versão. Detalhes como este a espera de que alguém - como o jornalista Júlio Hungria (hoje editor de música popular no "Jornal do Brasil"), que acompanhou todo o nascimento do movimento, venha a contar num livro que falta na (pobre) bibliográfica da MPB.
O meu amor sozinho
É assim como um jardim [ sem flor
Só queria poder ir dizer [a ela
Como é triste se sentir [saudade
Carlos Lyra surgiu ao meio musical carioca na mesma época em que Marcos Valle (Terra de Ninguém), Edu Lobo (Zumbi, Upa Neguinho) e Nelson Lins de Barros (1920-1966), que mais tarde seria sua parceria - começavam a fazer suas primeiras músicas. Em 199, João Gilberto fazia seu primeiro e histórico álbum. Vinícius de Moraes já trabalhava com o pianista Antônio Carlos Jobim há 3 anos (desde "Orfeu do Carnaval", em cuja trilha sonora colaboraram também Luís Bonfá e Antônio Maria).
Conta Carlinhos Lyra:
- "O que a gente queria era tocar. Queria se expressar, se comunicar. Chegava numa festinha, todo mundo dançando, a vitrolinha tocando, coisa e tal. Então a gente acabava com a vitrolinha e, se alguém insistisse, a gente ia pra um quarto. As meninas vinham todas com a gente, sentava todo mundo à meia-luz e ficávamos tocando a musiquinha pra elas ouvirem. As mães geralmente se chateavam com isso e vinham acabar com nossa festa, chamando todo mundo pra dançar na sala. E dançar bolero, com Gregário Barrios cantando..."
Compondo desde 1954 - ("Quando chegares aqui/Podes entrar sem bater/Ligue a radiola baixinho/Espere o anoitecer"), a primeira música de Carlinhos Lyra foi gravada em 57 pelo grupo "Os Cariocas": "criticando", uma fluência do jazz". Antes disso ele havia composto "Menina" (letra e música), vencedora do I Festival Internacional da Canção (TV-Rio, 1955). Geraldo Dias, o cantor que defendeu a música, mais tarde se tornaria conhecido pelo nome de Geraldo Vandré
Se você quer ser minha [namorada
Ah, que linda namorada [você poderia ser
Se quer ser somente minha
Exatamente essa coisinha, [essa coisa toda minha
Que de ninguém mais pode ser
Você tem que me fazer um [juramento.
De só ter um pensamento:
Ser só minha até morrer
Com Vinícius de Moraes, Carlinhos Lyra faria alguns dos momentos mais felizes da Bossa Nova: "Minha Namorada" "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas" e "Você e Eu" (Podem me chamar/E me pedir e me rogar/ E podem mesmo falar mal/Ficar de mal que não faz mal/Podem preparar milhões de festas ao luar), as duas primeiras criadas em Petrópolis, num fim de semana chuvoso, quando Vinícius e Lyra curtiam o clímax da feliz parceria. Antes de Vinícius, Lyra havia composto com Vandré ("Quem quiser encontrar o amor", em 1960 incluída por Joaquim Pedro na trilha sonora do curta-metragem "Couro de Gato) e em 1961 foi requisitado por Nelson Lins de Barros e Francisco de Assis para musicar a peça "Um americano em Brasília, que nunca chegou a ser encenada. Mas em compensação, nasceu da parceria com Chico de Assis, "A Canção do Subdesenvolvido", que acabou sendo proibida. E desta experiência, resultou também outras boas canções com Nelson Lins e Barros: "Depois do Carnaval" (Utilizado igualmente na trilha sonora de "Couro de Gato"), É tão triste dizer adeus", "Mundo à parte" e "Maria do Maranhão".
Maria, pobre Maria
Maria do Maranhão
que vive por onde anda
E anda de pé no chão.
Em seu primeiro lp (Philips, P-630-409, 1959), Lyra merecia na contracapa o elogio do rigoroso Ari Barroso:
- "Ouvi suas musicas. Carlinhos é um bom compositor o faz tudo bonito".
Neste seu primeiro disco, Lyra gravava "Ciúme", "Barquinho de papel", "Só mesmo por amor:, "Gosto de Você", "Quando chegares", "O bom do amor", "Menina" e aquela que seria o seu primeiro sucesso popular: "Maria Ninguém. Mas este disco, assim como o segundo - (Philips, direção musical de Monteiro de Souza) pouco vendeu fora do Rio de Janeiro. Só em seu terceiro álbum, Carlinhos alcançaria maior dimensão: "Depois do Carnaval" (P 630.492 L) tinha acompanhamento do Tamba Trio (Luís Eça, Elcio e Bebeto) e dava a primeira colher de chá a Nara Leão, em contraponto a Lyra na faixa "Maria do Maranhão
"Vem, segue o caminho
De quem ama
É noite na voz da quem [chama
Amanhecendo para o dia [que vai voltar.
Múltiplos os caminhos de Carlinhos Lyra nestes últimos 11 anos: a sua histórica atuação no "show" da Bossa Nova no Carnegie Hall (21/11/62), a montagem de "Pobre Menina Rica" (1963, na Boate Au Bom Goumert/Maison de France), volta aos EUA em 1963 e sua participação no ano seguinte no Festival de Jazz de Newport, ao lado de Stan e Getz. Em 1965 esteve no Brasil com Getz e a seguir excursionou com ele pelo Japão, Canadá e Interior dos EUA, indo parar no México para descansar. Lá, acabou trabalhando nas Olimpíadas (tradutor e locutor), musicando dez curta-metragem, fazendo televisão e teatro. E casando com uma bela americana, Katherine (em 1969), com a qual voltou ao Brasil em 1971.
Unindo seus primeiros sucessos - "Primavera", "Minha Namorada", "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas" a novos trabalhos, sozinho ou em parceria ("Até Parece"; "Mariana" com Rui Guerra; "Essa Passou" com Chico Buarque; "O Pregoeiro" com Jesus Rocha) e até letras em inglês ("I See me passing by", de sua esposa Kathy) - Carlinhos fazia há 2 anos o lp"... E no entanto é preciso cantar", frase de "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", que em 1972 daria título ao seu "show" de teatro - montado na Opinião e que agora vem a Curitiba. Após uma única apresentação na noite de amanhã na boate do Clube Curitibano, Carlinhos estará no Teatro do Paiol, sábado e domingo.
Em 1972, Carlinhos voltou a montar "Pobre Menina Rica" (Teatro da Praia, outubro), acumulando a direção, produção e interpretação do mendigo-poeta pelo qual se apaixona a pobre menina rica. Esta peça é o grande projeto de Vinícius tentar o cinema. Só que o poetinha explica:
- "Cinema é muito cansativo. A gente tem que levantar de madrugada..."
O Carlos Lyra de muita sensibilidade - cujas músicas tanto tem significado para a geração que cresceu com a Bossa Nova nos anos 60 - continua criando e produzindo, como mostrou no recentíssimo "Eu & Elas" (Philips, novembro/72), onde trouxe um punhado de novas composições e se apresentava na contracapa, como sempre com sinceridade:
- "Houve um tempo em que eu era espontâneo, mas não podia dizer as coisas porque não sabia nada. E agora que sei demasiado até, para calar-me, sinto que perdi aquela espontaneidade e às vezes permaneço calado por não me arriscar a ser exato.
Assim mesmo, apesar de sentir saudades do que fui, não me arrependo de não ser mais".
E no entanto é preciso [cantar
Mais que nunca é preciso [cantar
É preciso cantar a alegrar [ acidade).
LEGENDA FOTO 1- Ao lado de João Gilberto, Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e Sérgio Ricardo Carlinhos Lyra é um dos cinco nomes mais importantes da primeira fase da Bossa Nova - o movimento musical que sacudiu a MPB no final dos anos 50 e chegou aos EUA a partir de 1962 Lyra - autor de músicas como "Lobo Bobo" e "marcha da Quarta-Feira de Cinzas" - vem pela primeira vez a Curitiba: depois de morar sete anos nos EUA e México, voltou ao Brasil em 1971 e agora - no próximo fim-de-semana - aqui estará para três únicas apresentações de seu espetáculo"... E no Entanto é Preciso Cantar" amanhã à noite na boate do Clube Curitibano, sábado e domingo, às 21 horas, no Teatro do Paiol.
LEGENDA FOTO 2- Carlos Lyra e Katherine, a americana com quem casou no México. Katherine atuou em "Pobre Menina Rica" remontado no ano passado no Teatro da Praia. Compõe e faz filmes de publicidade.
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