A bossa trintona de Carlinhos Lyra
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 09 de janeiro de 1988
Aproximando-se dos 30 anos - considerando-se como data básica a gravação de "Canção do Amor Demais", de Elizeth Cardoso (*) - a Bossa Nova, felizmente, (re)existe. E algumas provas sólidas foram dadas no ano passado - mas que merecem registros ainda agora.
Para princípio de conversa, Antônio Carlos Jobim continua o nosso maior compositor, reconhecido mundialmente e solidamente criativo - seja revisitando seus maiores sucessos nos dois elepês-retrospectos de sua carreira, que gravou para o álbum-caixa da Fundação Emílio Odebrecht (tiragem exclusiva de 3 mil exemplares), em cuidadosa produção de Jairo Severiano, seja no excelente "Passarim" (Verve/Polygram), com toda razão um dos dez melhores lançamentos de 1987 - colocado simultaneamente no Brasil, Estados Unidos e Europa - pois o universo de nosso Tom é hoje, universal.
Nara Leão, aos 46 anos - a serem completados neste 19 de janeiro, está melhor do que nunca e revisitando, com ternura, inteligência e suavidade os clássicos da canção americana dos anos 40/50 em "Meus Sonhos Dourados" (Polygram/Philips) fez um dos discos do ano. Com sempre, acompanhada por Roberto Menescal, seu amigo e produtor há mais de 20 anos.
Duas reedições nostálgicas da Bossa Nova também aconteceram em 1987: Claudete Soares ("Claudete é Dona da Bossa", originalmente pela Mocambo, reeditado pela Imagem) e uma gravação ao vivo de Dick Farney (Farnésio Dutra e Silva, Rio de Janeiro, 14/11/1921 - 04/08/1987), uma das perdas lamentáveis do ano que passou, em gravação da DiscoBan, distribuído pela Polygram.
E Carlinhos Lyra? Aos 51 anos (Rio de Janeiro, 11/05/1936), o compositor que une o pensamento a ação - como dizia seu maior parceiro, Vinícius de Moraes (1913-1980), estava há dez anos sem gravar. Talento não lhe falta, mas, por razões difíceis de entender, até compositor-intérprete-teórico fundamental da renovação da MPB a partir do final dos anos 50, continua ilhado, ao lado da bela Kate Lyra, sem mostrar novos trabalhos (sua última composição gravada foi "O Negócio é Amar", sobre uma poesia póstuma de Dolores Duran). Público não lhe falta: com o show "25 Anos de Bossa Nova", lotou auditórios no Rio e São Paulo, sentiu seu público fiel e chegou a ter este nostálgico e belo espetáculo gravado ao vivo em som digital, e lançado pela 3M, gravadora que vem melhorando cada vez mais seu acervo. Infelizmente, não é o disco para quem acompanha Carlinhos Lyra, particularmente um dos compositores que mais admiramos: um repertório exclusivamente de músicas conhecidas, enfileiradas num bonito show para o teatro, ao vivo - que se de um lado mostra a sua participação no que de melhor se fez entre os anos 60/70, com parceiros como Vinícius, Ronaldo Bôscoli - ou sozinho, não traz o Carlinhos que, em absoluto, pode se aposentar. Heitor Valente, um de seus melhores amigos (e parceiros, inclusive), diz que Carlinhos não parou de compor. Então onde estão suas novas músicas? Que faça logo o elepê que a MPB precisa. Talentos de sua dimensão não podem aposentar-se aos 50 anos.
Nota
(*) Produção de Irineu Garcia, em 1958, para sua etiqueta Festa, "Canção do Amor Demais" trouxe Elizeth Cardoso cantando canções de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim (também ao piano). No disco, um violonista chamado João Gilberto já mostrava uma batida diferente na faixa "Chega de Saudade", que ele gravaria, no ano seguinte, num 78 rpm da Odeon. E então começaria a chamada Bossa Nova.
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