A História Oficial
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de maio de 1986
"A História Oficial" (16 prêmios em 13 festivais internacionais, além do Oscar de melhor filme estrangeiro-1986) é o exemplo do filme que corta rente aos ossos, como uma navalha. Um roteiro preciso, enxuto, magistral (e não foi sem razão que teve também indicação ao Oscar nesta categoria) mostra como um filme pode abordar um fato sem panfletarismo e até mesmo sem maniqueísmo.
Todo um triste e dolorido período da história contemporânea do Cone Sul - refletido na mais cruel ditadura militar - está nas imagens simples deste filme que marca a estréia de Luís Puenzo, 40 anos, vindo do cinema publicitário, no longa-metragem. Do cinema publicitário, Puenzo trouxe (como seu compatriota Hector Babenco) o requinte das imagens, o bom gosto e, sobretudo, a capacidade de síntese. Nada em "A História Oficial" é supérfluo. Tudo é preciso. Objetivo. Não há política explícita. Não há cenas de torturas, não há militares fardados (as únicas referências feitas a um general, focalizam um oficial em trajes civis) mas é como se estivéssemos vendo todos aqueles anos de horror que levou tanta morte, destruição e miséria a um dos países mais desenvolvidos do continente.
Uma história desenvolvida a partir de um argumento simples - a conscientização de uma professora de história, pequeno-burguesa, que preferiu permanecer alienada de todo um processo de violência que se desenvolvia ao seu redor - possibilita que se reflita nas imagens uma verdade que incomoda bastante. Especialmente de espectadores em outros países - como o Brasil - onde fatos também tão brutais como ocorridos na Argentina, aconteceram a partir de 1968 - e que, avestruzmente, foram escamoteados por milhares (diria até milhões) de pessoas, sobre a desculpa de "não quero saber de política, não quero me envolver". Brech, num poema clássico, já dizia algo profético: "Um dia eles levaram alguns.../ depois foram outros..."
São muitas as abordagens que "A História Oficial" possibilita. Do sentimentalismo de uma história de avó-busca neta - cuja mãe adotiva indaga a origem da criança - as questões mais profundas da política, dos interesses que levaram um país a ficar, por um período tão longo, sob o tacão de uma ditadura militar. A personalidade de Roberto (Hector Alberto) não é apenas do vilão da história. Ao contrário, é apenas uma peça conivente de um sistema, preocupado (como tantos milhares de colaboracionistas em outras situações) em enriquecer, em manter um status numa sociedade injusta. A discussão com o seu velho pai e irmão - vivendo modestamente de uma pequena oficina de fundo de quintal - é sintomático em termos de colocação do problema. Assim como a confissão de Alícia ao padre Ismael (Leal Rey) mostra toda a ausência da Igreja Católica (ao menos parte dela) do problema sofrido por milhões de argentinos (aliás, o filme de Puenzo sofreu restrições da Igreja devido a esta seqüência).
Se alguém quiser pode analisar também "A História Oficial" em termos de filmes sobre o ensino, a verdade, a discussão nos bancos escolares. Da Alícia (Norma Aleandro), intolerante e radical em suas posições que expulsa da sala de aula o jovem aluno que afirma "a história é escrita pelos assassinos" à mulher sofrida, amargurada, do final, há uma transformação impressionante. A mulher (aparentemente) bem casada, feliz, com sua filha adotiva - Gaby (Analia Castro), que, de repente, ao rever sua amiga de adolescência, Ana (Chunchuna Villafane) começa a se indagar de suas verdades. O reencontro de Alícia e Ana é um dos momentos mais densos e belos de "A História Oficial". Um tour-de-force de duas esplêndidas atrizes, suficiente para dar a ambas todos os troféus e prêmios (Norma, é bom lembrar, foi premiada em Cannes, no ano passado como melhor intérprete feminina).
Num filme repleto de pontos maiores, o destaque, em minha opinião, continua a ser o roteiro de Luís Puenzo e Aida Bortnik - de uma precisão rara, vista no cinema contemporâneo. Mas há também uma fotografia (Felix Monti) extremamente criativa e a trilha sonora envolvente de Atílio Stampone, com um tema que lembra, distantemente, um dilacerante tango - em contraposição a uma canção infantil de Maria Elena Walsh, nome maior da música argentina que o Brasil continua a ignorar.
Sim, "A História Oficial" é uma obra-prima! Um filme político, humano, profundo. Um filme que faz um corte visceral na realidade, que chega ao olho-coração-cérebro com o mesmo impacto de um soco no estômago. Faz pensar, refletir, chorar. E esta é a função do Cinema que se preza. Classificá-lo antecipadamente como o melhor filme de 1986 não é prematuro. É real.
LEGENDA FOTO - Gaby (Analia Castro): uma entre mil vítimas da repressão militar.
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