Humano canto de amor e esperança aos bravos deficientes físicos
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 11 de abril de 1990
"A esperança retardada atinge o coração"
(Christy Brown, num dos diálogos de "Meu Pé Esquerdo").
Não é preciso mais do que 7 minutos para concluir que desta vez a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood acertou. Independente dos méritos dos outros candidatos, ninguém poderia tirar o Oscar de melhor ator do inglês Daniel Day Lewis, 32 anos, por sua perfeita criação do tetraplégico Christy Brown. A emoção e entusiasmo que esta modesta produção financiada por uma televisão anglo-irlandesa (Granada Inc. / Miramax / Fernadale Films) passa ao espectador é tão intensa que não são poucos os que defenderiam mais três premiações as quais concorreu na noite de 26 de março: filme, direção e roteiro. Levou, mais do que merecidamente, o troféu de melhor coadjuvante, com a desconhecida atriz inglesa Brenda Fricker, vencendo Anjelica Huston e Lena Olin (ambas por "Inimigos, uma História de Amor"), Julia Roberts ("Flores de Aço / Steel Magnolias") e Diane Wiest ("O Tiro que não Saiu pela Culatra / Pratendhood", já exibido em Curitiba, Lido I).
Podendo ser considerado azarão no páreo do Oscar, "My Left Foot" venceu pelos seus méritos. A narrativa convencional, que o irlandês Jim Sheridan deu a vida de Christy Brown, acompanhando-o de seu nascimento até o seu encontro com a enfermeira Mary Care, com a qual casaria em 3 de outubro de 1972 (faleceria nove anos depois, em 1981), faz deste um daqueles filmes-hinos a vida.
Mesmo que não fosse (mas é) uma obra cinematográfica de primeira qualidade, "Meu Pé Esquerdo" valeria pela energia positiva que transmite. A exemplo de outras obras que abordaram deficientes físicos que souberam vencer suas limitações e tornaram-se pessoas de sucesso (ver texto, nesta mesma página), esta realização britânica-irlandesa, totalmente filmada em Dublim (e arredores), tem a sinceridade de mostrar o problema como ele é - e nisto estabelecendo uma empatia com milhares de famílias, em todo o mundo, que carregam o peso de terem filhos excepcionais ou deficientes físicos. Há uma lição para não se esquecer em uma obra da densidade de "Meu Pé Esquerdo": a importância da pessoa excepcional-deficiente ser (mais) amada e (melhor) entendida, sem preconceitos e a marginalização que, as próprias dificuldades de convivência, no dia a dia, trazem.
Narrada em forma de flash back, a partir do momento em que já adulto, Christy Brown e seus pais, chegam a um luxuoso castelo em Dublim, para uma festa em homenagem ao tetraplégico ter vencido suas barreiras físicas e tornado-se não só um aclamado pintor mas também um escritor de sucesso a partir de sua autobiografia, a ação retroage à manhã de 5 de junho de 1932, quando no Hospital Rotudo, em Dublim, nasceu Christy, um dos 22 filhos do casal Brown. Constatada sua deficiência física, a seqüência seguinte coloca seu pai, um pedreiro rude, sofrido (uma magnífica atuação de Ray McAnally) bebendo numa taverna, aonde há a mostra da crueldade humana, quando "amigos" ironizam o fato de ter tido um filho tetraplégico. A sua reação é a esperada! Agride com uma cabeçada o grosseiro inoportuno, dando a primeira seqüência de ação num ambiente tão fordiano em termos de cenários de grandes quebras-quebras cinematográficos: as tavernas irlandesas (quase no final, o próprio Christy, voltando aquela taverna, acaba também mostrando ser bom de briga e provoca uma violenta luta em que se envolvem todos os participantes). Pode não ser, mas a impressão ao cinéfilo é que Jim Sheridan quis homenagear a John Ford de "Depois do Vendaval" (The Quiet Man, 1952), com esta seqüência.
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Tão admirável quanto o trabalho de Daniel Day Lewis como Christy Brown já adulto, é a atuação, na primeira parte do filme, do garoto Hugh O'Connor como Christy em criança. Dois cinéfilos que se emocionaram com o filme, na sessão especial de domingo pela manhã, o arquiteto Eduardo Guimarães (vice-presidente da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e a advogada e escritora Anita Zippim Monteiro, não escondiam seu protesto: acham que o garoto mereceria ter tido uma premiação especial. Mas só o fato de uma produção modesta, irlandesa, já ter ficado com 2 dos principais Oscars foi uma vitória.
A emoção é uma constante em cada seqüência, nos blocos com os quais Jim Sheridan e seu co-roteirista, Shane Connaughton, trabalhando sobre o livro de Christy Brown, construíram a narrativa: a mãe, o inferno, a vida, etc... o garoto tetraplégico, marginalizado pela própria família mas que busca comunicar sua vontade de mostrar que tinha uma inteligência perfeita - e que, ao escrever a palavra mamãe com giz no chão, movimentando o pé esquerdo - o único órgão do corpo sobre o qual tem controle motor, fixa o início de uma caminhada para o entendimento. Capaz de jogar futebol e fazer gols, sensível ao desenvolver sua criatividade plástica, forte em seu pensamento, as reações de Christy Brown são absorventes e encaixam-se dentro de toda uma estrutura familiar-social: a incompreensão (inicial) do pai, o ambiente pobre em que vive sua família, as aproximações com a médica Eileen Cole (Fiona Shaw), que o levaria a revelar publicamente seu talento de artista plástico - e por quem sofreria uma terrível paixão que o levou inclusive a tentar o suicídio. Esta densidade de ser humano, com reações comuns a qualquer pessoa - amor, vida, desespero, vícios (chegou a ser alcoólatra num período), é que fazem deste personagem que permanecia esquecido (mesmo as pessoas ligadas ao estudo de casos de tetraplégicos notáveis, desconheciam, até agora, maiores dados a seu respeito) um personagem tão fascinante. Difícil dizer como seria este filme sem uma interpretação tão vigorosa como a que Daniel Day Lewis obteve: encarnando o personagem, durante as filmagens, chegou a ser alimentado e transportado pelos colegas de equipe, conforme relata esta semana a revista "Veja". Às comparações com a (também magnífica) interpretação que Tom Cruise deu a Ron Kovic, o veterano do Vietnã que, voltando paralítico da guerra, se torna um líder pacifista em "Nascido a 4 de Julho" (Cines Condor / Lido I) são inevitáveis - já que ambos os personagens exigiram interpretações/criações da mais absoluta dramaticidade, mas sem cair no melodrama. Ambos conseguiram excelentes resultados, mas no ranking final, Day Lewis (cujo talento há havia sido visto em trabalhos tão diversos como o punk bicha de "Minha Querida Lavanderia" ou o médico conquistador Toma de "A Insustentável Leveza do Ser"), ganhou. Todo o elenco, aliás, está perfeito, assim como o diretor Sheridan soube buscar profissionais da maior competência para obter um resultado belíssimo - como a música de Elmer Bernstein, abrindo com um tema operístico, e que tem um desenvolvimento ajustado a cada seqüência dramática. A fotografia de Jack Conroy, cativante, valoriza as vielas e arquitetura da zona pobre de Dublim, mas, no final, num panorâmico visual, enaltece a cidade de James Joyce (1882-1941) e do dramaturgo irlandês John Millington Stynge (1871-1909), citados ao longo do filme - que, em referências literárias, traz Christy declamando um dos mais belos monólogos de "Hamlet". Coincidência ou não, neste momento, Daniel Day Lewis encena o príncipe da Dinamarca em nova montagem da tragédia de Shakespeare, num teatro de Londres.
LEGENDA FOTO - Uma das cenas mais marcantes de "Meu Pé Esquerdo", após sua primeira exibição, Christy Brown durante um jantar festivo recebe, com agressividade, a notícia de que sua médica, Eileen (por quem se apaixonou) vai casar. Este filme, premiado com 2 Oscars, terá hoje sua pré-estréia, em benefício da LBA, no Cine Astor.
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