Leila, a mulher, o mito e o filme
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 08 de outubro de 1987
Só pela falta de alguém que fizesse as apresentações, foi que uma cena no mínimo pitoresca deixou de acontecer nos corredores da TV Iguaçu, na manhã de sábado, 3. Para gravar uma entrevista, ali estavam o diretor Luís Carlos Lacerda (Bigode), a atriz Louise Cardoso e Lígia Diniz - irmã caçula de Leila Diniz, biografada no filme que inaugurou no domingo, 4, a I Mostra do Cinema Latino-Americano no Paraná. Também no Canal 4, cruzando com este grupo estava Emir Calluf, ex-padre, que há 15 anos, quando da morte de Leila Diniz, no acidente do DC-8 da Japan Air Lines, na Índia, com o País todo consternado com a tragédia, teve a ousadia de atacar Leila, tachando-a de prostituta.
Hoje, homem rompido com a Igreja, cabeça bem mais arejada, talvez o ex-padre Calluf tivesse uma posição diferente. O fato é que em 15 de junho de 1972, quando a manchete da morte de Leila chegou aos jornais de todo o Brasil, a situação era outra.
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Emocionante. A palavra repetia-se de boca em boca, a partir das 23,30 horas de domingo, 4, após o público assistir no Lido I, a primeira exibição de "Leila Diniz", que só ontem, teve uma pré-estréia no Rio de Janeiro - e que estará concorrendo nos Festivais de Cinema de Brasília e Natal, ainda este mês. Um filme, assim, inédito, versando sobre o próprio mundo do cinema brasileiro - através da vida de uma atriz solar, mulher-mito dos anos 60 - foi, apropriadamente, escolhido para abrir uma mostra de alto astral.
Aos 42 anos - canceriano de 15 de julho de 1945, mesmo ano em que nascia Leila Roque Diniz (Niterói, 25/3/1945), Luiz Carlos Lacerda foi um de seus maiores amigos. Juntos experimentaram imensas emoções, participaram de várias fases que marcaram os anos 50, sentiram a euforia dos anos JK e da alvorada popular-socialista no governo Jango, sofreram com a repressão e também fizeram suas viagens psicodélicas. Assim, só mesmo Bigode poderia fazer um filme honesto, sincero, emotivo e poético sobre a professorinha carioca, filha de uma família classe média - o pai, um bancário comunista, admirador de Luís Carlos Prestes - e que, por sua sinceridade e emotividade assustava os senhores do poder.
"Leila Diniz", independente de apreciações críticas maiores - e que a partir destas primeiras projeções começam a pintar na imprensa nacional - é um filme-sinceridade, no qual Bigode assume e desnuda a sua própria vida. Como nos dizia, após a projeção, se mergulhou na vida de Leila, uma mulher absolutamente sem preconceitos - e que por sua autenticidade sofreu o "pão que o diabo amassou" (especialmente depois da desbocada entrevista no nº 22 d'"O Pasquim", que chegou a ter circulação de 200 mil exemplares), não poderia também esconder a sua própria vida. Através do alter-ego interpretado por Diogo Varella, Bigode se desnuda em suas inquietações políticas, seu assumido homossexualismo e suas experiências com drogas nos anos 60 - enfim, numa verdade que confere as imagens de "Leila Diniz" uma autenticidade emotiva.
Da cena de abertura - um discurso de Luís Carlos Prestes, em 1946 - após a redemocratização - até o final, há a pintura de tintas políticas. Sem ser uma militante assumida, Leila foi uma mulher de idéias lúcidas, com amigos perseguidos - e simbolizados no emotivo personagem interpretado por Stênio Garcia; com as portas de sua casa sempre aberta a quem precisasse de apoio e teto.
Corajosamente, sem temer as patrulhas ideológicas, Bigode faz justiça a Flávio Cavalcanti, revelando-o em sua coerência, quando, mesmo sendo anti-comunista e conservador, foi uma das raras pessoas a apoiar Leila, perseguida pela Rede Globo de Televisão (por força do Ministério da Justiça), acolhendo-a como júri em seu programa na TV-Tupi e, mesmo, escondendo-a em seu sítio, em Petrópolis, quando o DOI-COI a ameaçava de maiores violências.
"Leila Diniz" é um filme que emociona e traz maior empatia a quem acompanhou a sua trajetória, a partir de sua explosão nacional em "Todas as Mulheres do Mundo" (1966, de Domingos de Oliveira, seu ex-marido), terceiro dos 14 filmes que interpretaria em sua curta - mas agitada carreira cinematográfica. Bigode refez seqüências de alguns dos filmes mais importantes de Leila - "Fome do Amor" e "Azylo Muito Louco", dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, e de seu próprio "Mãos Vazias", em 1971, mas sem preocupação de inserir uma ordem-cronológica.
Há inúmeros aspectos que fazem "Leila Diniz" merecer longas análises - e isto, por certo, acontecerá agora, com a projeção do filme nos festivais e, em novembro, seu lançamento comercial. Entretanto aqui fica o registro: Louise Cardoso, como a personagem título, está extraordinária, perfeita. E a trilha sonora de David Tyguel, com temas próprios e músicas incidentais, criou um belíssimo emolduramento sonoro - por si só, merecedor já de premiações especiais.
Felizes os espectadores que souberam, no domingo, assistir a primeira exibição deste filme-amor a Leila Diniz.
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