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Aramis

A longa noite de terror

Poucas vezes na história do teatro mundial, uma peça reflete tanto a realidade quanto "O Carteiro da Noite" (auditório Salvador de Ferrante, até domingo, 21 horas). Seu autor, o jornalista e dramaturgo Eddy Antônio Francisco, a escreveu em pouco mais de uma semana, no mês de janeiro, após ter sido vítima da experiência mais violenta e brutal de sua vida. Como ele próprio relata no programa do espetáculo - que os atores Ailton Silva, Carlos Daitschman e Ulisses Yarochinski estão apresentando, todas às noites, no Guaíra - no dia 18 de janeiro de 1979, uma quinta-feira alguém telefonou para Eddy - que é assessor da presidência da Federação das Indústrias do Estado do Paraná e editor da revista "Indústria", identificando-se como amigo do seu irmão que mora em Guarapuava, e dizendo que tinha uma carta da qual era o portador e com a recomendação que lhe fosse entregue em mãos, o mais rapidamente possível. Eram 19 horas, aproximadamente. Quinze minutos mais tarde, Eddy abria a porta de seu apartamento, na Rua Voluntários da Pátria, para o suposto mensageiro: um rapaz de 25 ou 27 anos, 30 no máximo, alto e magro, cabelos lisos, sem nenhum sinal ou características peculiar. Assim que Eddy abriu a porta, o suposto mensageiro o ameaçou com um punhal e, durante 12 horas, o manteve amarrado numa poltrona, sujeitando-o a todo tipo de tortura física e mental, constantemente ameaçando-o de morte. No início, Eddy tentou reagir e, em conseqüência, levou 17 punhaladas - duas das quais o feriram profundamente. Até às 5 horas da manhã, o marginal permaneceu em seu apartamento, só retirando-se então, levando cerca de Cr$ 300 mil em objetos (aparelhagem de som, roupas, tv a cores, relógios etc.) Furioso por não encontrar dinheiro - Eddy tinha apenas Cr$ 100,00 nos bolsos - o marginal remexeu todo o apartamento, destruiu discos e obras de arte - repetindo sempre que o assassinaria antes de se retirar. Só na manhã seguinte, às 8 horas, quando chegou a empregada, Eddy foi libertado e pode procurar assistência médica. A experiência de ter sido vítima, por toda uma noite, de um marginal, para quem abriu a porta de seu apartamento num edifício no centro da cidade (seu único vizinho, estava em viagem), a violência sofrida, o terror e o medo, o traumatizaram ao ponto de se mudar para outro edifício. Mas, com sua sensibilidade de homem de teatro - autor de mais de 15 textos, 5 dos quais já encenados, jornalista de 20 anos de experiência, o levaram a colocar num texto as horas de desespero que passou, mas que, conforme agora relata, lhe desvendaram também com isso, "um retrato fiel da violência de que somos testemunhas todos os dias, a qualquer hora, em qualquer lugar, ao mesmo tempo em que revelou, de maneira espantosamente clara e rica em detalhes, todas as facetas de uma criatura extremamente complicada e multiplicada. Era a um só tempo, o carrasco e a vítima. O juiz e o réu, o bom e o mau, o ingênuo e o esperto, o sádico e o masoquista, o compreensivo e o intolerante, a criatura e a besta. Concomitantemente, ele me inspirava ódio e piedade, revolta e compreensão, medo e ternura, desejo de vingança e perdão, na medida em que sua facetas me foram reveladas durante uma noite toda, ou mais precisamente, até as 5 horas da manhã". Apesar de registrada queixa e dadas todas as informações possíveis, passando 3 meses, a Polícia nada descobriu sobre o ladrão - que Eddy imagina ser de outro Estado, e que agiu com muita habilidade: descobriu seu nome e endereço, sabia que ele mora sozinho e que tinha vizinhos presentes. E, para carregar todo o material roubado, possivelmente um cúmplice, de carro, deveria estar a sua espera, às 5 horas da manhã, defronte o prédio - enquanto ele, amarrado e amordaçado, permaneceu mais 3 horas, até ser libertado. Uma experiência terrível, mas da qual Eddy soube retirar os dados pra um texto de uma tremenda força, que escreveu quase que como uma catarse - fórmula mais econômica e prática do que se submeter a um psicanalista, tal o trauma sofrido. E, quando o ator e produtor Aílton Silva (o "Caruaru"), lhe convidou para dirigir um espetáculo e ofereceu 4 textos diferentes. Eddy não se interessou por nenhum. Ailton viu, entretanto, uma cópia do texto que Eddy estava preparando e pediu para ler, com o que ele concordou mas sem informar de uma trágica noite, vivida há poucas semanas. Ailton entusiasmou-se com o texto e decidiu montá-lo - só então Eddy revelando a sua origem. Assim, o trabalho de dirigir "O Carteiro da Noite" foi extremamente pessoal e doloroso, pois, nos ensaios, durante mais de um mês, ele reconstruiu 90% do que de fato aconteceu - empregando as mesmas palavras as mesmas expressões e o mesmo diálogo mantido entre ele e o seu algoz, Eddy, que em 1962, quando repórter de "O Dia", percorreu durante todo um dia a cidade, vestido de mendigo - e que resultou numa série de 7 belíssimas reportagens - não teve dificuldades em preparar o texto devido sua experiência jornalística, pois durante anos habituou-se a transcrever longas conversas sem auxílio de notas ou de gravador, aliás, jamais utilizados mesmo para as entrevistas mais importantes. "É lógico, diz, que a linguagem jornalística não é a mesma do teatro, daí porque a necessidade, em determinados momentos, do prolongamento ou atenuação de cenas, vocábulos ou mesmo ações e reações, porque se experiência tenho de jornalismo, tenho-o igualmente, ou maior de teatro, razão porque conciliá-los sem prejuízo da verdade e do clima desejado". Esta interação realidade-catarse, faz de "O Carteiro da Noite" um espetáculo da maior força dramática - um documento-denúncia da violência que ameaça a todos nós, a cada momento. Eddy, residindo na primeira quadra da Rua Voluntários da Pátria, uma das mais centrais ruas de Curitiba, foi vítima de um assaltante cruel, neurótico (e que agia sob efeitos de drogas), que só não o assassinou, porque Franciosi, com inteligência, conseguiu manter-se calmo e revelar, às 4 horas da manhã, que não o odiava: num momento em que o ladrão machucou os dedos ao tentar acender um candelabro, recomendou que fosse do banheiro que ali encontraria um estojo de primeiros socorros. Apesar da crueldade do assaltante, o gesto de Eddy o emocionou e, isto o teria levado a poupar sua vida. O ladrão quebrou preciosos discos importantes e levou apenas um álbum uma edição rarissima de "Ai da", com Maria Callas, que Eddy havia adquirido há alguns anos, no Exterior, e pela qual o comerciante Joel Mendes, proprietário da rêde de lojas "Cinderela" e um dos maiores apaixonados por opera no Paraná chegou a oferecer Cr$ 10 mil. E o ladrão levou esta opera, dizendo, que o fazia em homenagem a sua mãe, também chamada Ainda, Aliás, o ladrão chegou a fazer um telefonema interurbano para Porto Alegre e falar com uma ex-namorada, perguntou por sua mãe. Posteriormente, Eddy obteve o número do telefone chamado, mas nem com esta pista a polícia procurou, até agora, investigar melhor o assunto. Além de representar a mais pessoal transposição ao palco de um dramático momento de sua vida, "O Carteiro da Noite" está tendo uma carreira das mais difíceis: estreou às vésperas da Semana Santa, com problemas técnicos terríveis - inclusive falta de refletores que Eddy precisava para criar uma iluminação especial por certo momentos. Por falta de público, por 4 noites o espetáculo foi cancelado e domingo, dia 22 a sessão teve que ser interrompido devido ao atiguado quadro de luz do pequeno auditório do Guaíra apresentar problemas que por pouco não provocaram um incêndio do teatro. Apesar de todas estas dificuldades - e de ter a promessa de uma ajuda de apenas Cr$ 20 mil de subvenção (embora a produção já esteja ao redor de Cr$ 50 mil), Ailton Silva não vai desistir e continuará a apresentar "O Carteiro da Noite" até o próximo domingo. E, acreditando as possibilidades desta peça, tão documental, importante e contemporânea, que levá-la ao Rio de Janeiro e São Paulo. Um espetáculo que independendo dos seus méritos artísticos - reconhecidos por todos que já assistiram e inclusive destacados na crítica de Marcelo Marchioro, publicada no suplemento "Enfim-de-Semana", há 2 semanas, é um sinal de alerta contra a violência que nos cerca e faz com que possa se dizer que, tragicamente, é a vida que ameaça a ficção. E não o contrário, como seria de se desejar. Eddy Franciosi, jornalista, escritor, teve há apenas 3 meses uma longa noite de terror e desespero - que, com sua sensibilidade e coragem, transpõs agora ao palco.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
24/04/1979

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