A Missa do Vaqueiro
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 26 de setembro de 1976
Um aspecto que nenhum disc-review lembrou-se de registrar até agora, em relação ao aparecimento da " Missa do Vaqueiro" com o Quinteto Violado (Philips, 6349191, julho/76) é que com este lançamento a Phonogram passa a dispor de nada menos do que cinco diferentes formas litúrgicas regionais dos Santo Sacrifício da Missa, documentando musicalmente a tendência de tornar cada vez mais a liberalização da Igreja Católica, em relação a fazer chegar ao povo a mensagem do Evangelho, segundo a língua e os costumes de cada um.
Numa noite da primavera de 1956, na missão de Katana, às margens do Lago Kivu, irmã Lucrécia, da Ordem das irmãs Brancas, regeu um coro de trinta noviças e freiras congolesas numa exibição da " Missa Bantu", quando da celebração da Missa da Páscoa.
A " Missa Bantu" (registrada em lp Philips, SLP 9.184, edição no Brasil de maio de 1969) com suas melodias puras, rica e límpida cadência, revelou-se logo como um sucesso absoluto por haver tão bem apreendido o espírito africano. Três anos, o padre Belga Guido Haazen, ao chegar ao então Congo Belga (hoje país independente) ficou impressionado com o profundo sentimento musical do povo e já no ano seguinte criaria um grupo vocal intitulado " Os Trovadores do Rei Baudoin", formado por meninos com idades variáveis de 9 a 14 e com o qual viria a desenvolver a " Missa Luba", cantada em autêntico estilo congolês, incluindo ainda canções folclóricas.
Após o grupo viajar pela Europa em 1958, a " Missa Luba" tornou-se conhecida em todo o mundo, principalmente pelo registro feito pela Philips (SLP-9115, edição no Brasil em 1967). Em termos latino-americanos, o compositor Ariel Ramirez, compôs na Argentina a " Missa Criolla" (edição Philips, SLP 9.167), que interpretado pelo Coro da Basílica del Socorro e tendo por solistas o grupo Los Fronteirizos, trouxe para a realidade hispano-americana, as palavras de Cristo, compondo uma missa cantada baseada em motivos puramente folclóricos, no que recebeu estímulo e orientação das autoridades religiosas.
O grupo pop The Electric Prunes, formado por John Henen (piano, órgão), Jim Love (vocais, harpa), Weasel (guitarra rítmica), Opuent (bateria), Ken Williams (guitarra), e Marx Tulin (baixo), que desde fevereiro de 1967 trouxe a linguagem pop uma sólida influência erudita, também decidiu fazer uma " Missa em Fá menor" utilizando instrumental eletrônico. Assim, em novembro de 1967 aparecia a " Missa Em Fá Menor", de David ª Axelrod, com os " kyrie", " Glória", " Credo", " Sanctus", " Benedictus" e " Agnus Dei", na linguagem das guitarras e percussão - mas com todo o respeito religioso. Apesar do ineditismo (na época) do projeto, o disco praticamente passou despercebido (lançamento no Brasil na Philips/ Reprise, em 1968, acabando por ser retirado de catálogo, (aliás, como ocorreu com as Missas Bantu, Luba e Criolla).
No Brasil, também foi criada uma música de enfoque regional: em todos os terceiros domingos de julho realiza-se, desde 1970, em um local ao ar livre do município de Serrita, a 553 Km de Recife, a Missa do Vaqueiro. É uma missa nordestina a que a população das redondezas, vaqueiros encourados à frente, comparece para um ato de fé (agora transformado em evento turístico) a fim de cultuar a memória do vaqueiro Raimundo Jacó (primo de Luiz Gonzaga), assassinado naquele local a 8 de julho de 1954. O ato religioso, oficiado desde o início pelo padre João Cancio, ganhou de ano para ano uma tal de dimensão de comunhão pública contra a maldade humana e as injustiças que o médico, poeta e compositor Janduhi Finizola, de Caruaru, resolveu em 1973 compor uma música para cada uma das partes. A missa abre com a " Toada de Galo" (Canto de entrada que nos primeiros anos ficou a cargo das vozes dos aboiadores), segue com " A Morte do Vaqueiro", de Nelson Barbalho e Luiz Gonzaga (canto de meditação que coube nas primeiras missas à música dos violeiros e continua com uma composição de Janduhi Finizola para cada parte seguinte da missa: " Kyrie Elelso", " Glória", " O Credo", " Ofertório", " Sancts Sanctus", " Pai Nosso", " Comunhão" e " Canto de Despedida".
O Quinteto Violado, grupo musical de Recife, que desde o seu primeiro lp vem se preocupando em desenvolver um trabalho de grande brasilidade, com raízes profundas no Nordeste, não poderia deixar de aproveitar este tema para mostrar sua grande visão de nossa cultura popular. Assim é que embora gravado em estúdio, sem a participação de Luiz Gonzaga, o veterano acordeonista-cantor-compositor que anualmente está presente na cerimônia da Missa do Vaqueiro (que este ano teve a colaboração do próprio Quinteto Violado, que participou musicalmente da cerimônia), a gravação da Missa criada por Janduhi Finizola, sobre os motivos regionais e dentro da liturgia da Igreja - acompanhados da " Toada de Gado" e " A Morte do Vaqueiro", no início, vem se constituindo num documento sonoro de maior importância.
Para quem (como nós) já estava preocupado com um aparente comercialismo do Quinteto Violado, gravado sucessos estandartizados em seus dois últimos elepes, este álbum (Philips, 6349191, agosto/76), é estimulante e prova que o grupo, felizmente, prossegue em seu trabalho digno e nacionalisticamente válido - embora o produtor Roberto Santana, que os lançou, há quatro anos passados, tenha se afastado. Neste disco temos também o aparecimento do flautista José, ex-acompanhante de Alceu Valença, que substitui ao genial Sando, 17 anos, que após ter acompanhado o grupo nos 5 primeiros elepês e por milhares de quilômetros de excursão, retornou aos bancos escolares.
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