O excelente Lp de Bosco e Nelson de todos os tempos
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de abril de 1975
Dentro da música brasileira, um dos compositores de maior vigor surgidos nos últimos quatro anos foi João Bosco, 18 anos, mineiro de Ponte Nova, formado em Engenharia de Minas pela Escola de Ouro Preto, mas que trocou a carreira técnica pela música, ao ter os seus primeiros trabalhos aprovados pelos mais exigentes críticos. A parceria com Aldir Blanc (Mendes, um dos mais respeitados psiquiatras cariocas) resultou num trabalho perfeito com novas harmonias (João) letras inteligentes (Aldir). Elis Regina, cantora que apesar do mau gênio tem um estilo único e invulgar faro para descobrir bom repertório, foi a primeira a enxergar as potencialidades de Bosco/Blanc, e assim há quatro anos, já gravava "Bala Com Bala", que seria uma de suas músicas de maior sucesso na fase atual - em que teve uma segura orientação de seu marido-pianista-arranjador Cesar Camargo Mariano. Depois, foi Sergio Ricardo, que ao lançar o frustado (mas excelente idéia) Disco de Bolso, escolheu "Agnus Sei" na voz do próprio João Bosco, para completar o número um de sua bolação - e onde foi lançado "Águas de Março" de Antonio Carlos Jobim - a melhor música de 71. A RCA Victor, animada com tantas recomendações, não teve dúvida em contratar João Bosco e garantiu um adiantamento com o qual o violonista-compositor se instalou na Guanabara. O disco de estréia teve seu lançamento retardado, ao que consta pela crise de PVC (derivado do petróleo - matéria-prima na fabricação do disco) e assim quando surgiu, em meados de 73, João e Aldir já estavam curtindo outra fase de criação. Apesar disso, mesmo considerando o hermetismo de algumas das canções incluídas naquele disco, mereceu sua inclusão entre os 10 melhores de 73. No ano, passado, apareceram novas músicas de João Bosco/Aldir Blanc, mas o seu prometido segundo lp não aconteceu.
Além de Elis Regina, outras cantoras descobriram o caminho da mina. Isto é a extraordinária expressividade de suas composições. Assim, se Elis Regina dedicou três das faixas de seu segundo lp de 75 (Philips, 6349.121, novembro) a Bosco/Blanc ("O Mestre Sala dos Mares"), "Caça à Raposa", "Dois Prá Lá, Dois Prá Cá"), o sempre vivo Herminio Bello de Carvalho, ao produzir os discos da vigorosa (e admirável) Simone também foi beber na mesma fonte. Com isso, em "Quatro Paredes" (Odeon, 12.552), Simone gravou "Bodas de Prata" (para nós a melhor faixa do lp, e uma das dez canções do ano), "De Frente Pro Crime" e "Fantasia". Na produção do show "Te Pego Pela Palavra" para sua amiga Marlene (posteriormente editada em lp, Odeon, SMOFB 3855, dezembro/74), Herminio também escolheu músicas de Bosco/Blanc para revigorarem o show da antiga rival de Emilinha Borba nos programas de auditório da rádio Nacional: "Dois Prá Lá, Dois Prá Cá", "Cabaré" (lançado por Elis em 1972), "Resistindo", "Beguine Dodoi", e "O Chefão".
Maria Alcina, com sua masculinizada voz, após uma desastrada estréia fonográfica, há três anos, soube em segundo lp (Continental, 1-01-404-094, dezembro/74) a recorres [às] [músicas] de Bosco/Blanc: "Beguine Dodoi", "[Foi-se] O Que Era Doce", "Amigos Novos e Antigos" e "Kid Cavalinho" - que seria o seu grande sucesso, editado inclusive em compacto.
Assim, com se pode observar, 1974 foi o ano-confirmação do talento de Bosco/Blanc (e é importante sempre mencionar os dois por formam um trabalho integrado), com músicas do mais alto nível, comunicabilidade, mas também simples em suas estruturas.
Em seu primeiro lp, ("João Bosco", RCA Victor, 103.0062) as músicas tinham letras [longas] ("Nada a Desculpar", "Tristeza de uma Embolada", "Angra", "Fatalidade", "Alferes") , além de propostas vanguardistas em termos de imagem ("Amon Rá e o Calo de Troia", esta com letra de Paulo Emilio), "Bernardo, o Eremita" e "Boi". Agora, mais seguros e sentindo o gosto popular, mas sem fazer uma concessão no nível artístico, Bosco/Blanc recorreram a gêneros musicais tradicionais - principalmente bolero - para criarem músicas inteligentes, bem humoradas e com imagens perfeitas. Se em "Cabaré", havia uma frase-síntese dos anos 50 ("e com vestidos tomara que caia/surge a crooner do norte"), em "Dois Prá Lá, Dois Prá Cá", também há um achado de bom humos, mas que também traduz uma imagem que muitos retém na memória de bailes em décadas passadas:
- No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Band-aid no cancanhar...
As músicas de Bosco/Blanc exigem de suas intérpretes o máximo de técnica e sentimento. E por isso mesmo é que valorizam tanto os repertórios de Elis Regina, Simone Merlene, que as tem sabido criá-las (ou [recria-las] quando se tratam de canções já gravadas [anteriormente]) com personalidade e sensibilidade.
Para este seu segundo lp ("Caça [à] Raposa", RCA Victor 103.0112, março/75), João Bosco reservou seis músicas novas: "Jardins de Infância", "Jandira na Gandaia", "Escada da Penha", "Casa de Marimbondo", "Nesta Data", "Violeta de Belfort Roxo". Em todas elas, como nas seis outras músicas já conhecidas - Bosco/Blanc não se limitam a mostrar uma bela canção: contam uma história, num roteiro de imagens (e sons) perfeitas, que poderiam motivar curtas-metragens nas mãos de um cineasta inteligente. Por exemplo, abrindo o lado A, temos "O Mestre-Sala dos Mares", uma espécie de marcha-rancho carnavalesca, que Bosco/Blanc dedicaram ao marinheiro João Candido, líder da Revolta da Chibata, mas sem mencionar o seu nome. Em seguida, "De Frente Pro Crime" é uma crônica-denúncia da insensibilidade da grande cidade e seus habitantes com relação às tragédias do cotidiano, descrevendo a reação individualista de cada um perante a tragédia anônima, e encerrando com esta estrofe perfeita:
Sem pressa foi cada um pro seu lado
Pensando numa mulher ou num time.
Olhei o corpo no chão e fechei
Minha janela de frente pro crime.
"Dois Prá Lá, Dois Prá Cá" é um nostálgico bolero de um momento na vida de todos nós. "Kid Cavaquinho" uma canção bem trabalhada, [...] permitindo um destaque de Neco no cavaquinho. Mas as duas músicas mais importantes, ente as já conhecidas, são "Bodas de Prata" e "Caça à Raposa". A primeira é uma navalhada penetrante no universo doméstico, numa visão sem drama da dramaticidade de um cotidiano. Já "Caça à Raposa", que dá título ao lp, é a mais trabalhada música da atual fase de Blanc/Bosco, com frases perfeitas, da primeira à última linha.
O olhar dos cães, a mão nas [redes]
E o verde da floresta (...)
Ah, recomeçar com as colheitas
Como a lula e a covardia,
Ah, recomeçar com a paixão e o fogo
E o fogo
E o fogo
Das novas composições, todas justificam não simples registro, mas longos ensaios: as memórias ternas de um dia que todos tivemos em que os caminhos de nossas casas não passavam do portão principal em "Jardins de Infância"; a criação de uma nova musa feminina, ironicamente chamada "Jandira da Gandaia" a crendice e fé popular (Escadas da Penha), o samba irônico e bem balanceado ("Casa de Marimbondo"), e para parafernália de imagens em "Nessa Data" e, finalmente, a "Violeta de Belfort Roxo", para nós, numa primeira audição deste lp, a mais densa e inquietante música, entre as inéditas, deste lp. Como "Bodas de Prata", "Caça à Raposa" ou "Cabaret", esta "Violeta de Belfort Roxo" é um roteiro de amor e solidão, contando em 27 linhas a vida e paixão de uma "branca adolescente de raro encanto" que "vivia entre bordados, pensativos", "triste, no canto" e que um dia se transforma numa Mãe-Virgem, embora.
O alentado rebento
Vai se chamar Juvenal
Por sinal, o mesmo nome
De um sargento do local.
Ao lado da grandeza das músicas de Bosco/Blanc, "Caça à Raposa" mereceu uma produção ultracuidadosa do admirável Rildo Hora. Para os arranjos e regências, houve o talento de Cesar Camargo Mariano, pianista e marido de Elis Regina, portanto já conhecedor profundo das músicas de Bosco. Na formação instrumental, um time da pesada: Cesar Mariano nos teclados, Dino no violão de sete cordas, Neco no cavaquinho, Luizão no baixo, Pascoal Meireles na bateria, Chico Batera e Everaldo Ferreira na percussão, Gilberto D'Ávila e Doutor no surdo de repique. Na guitarra, houve a colaboração de Toninho Horta em "Nessa Data", "De Frente Pro Crime", "Caça à Raposa" e "Bodas de Prata". Já Helio Belmiro executou guitarra em "Jardins de Infância", "Dois Prá Lá, Dois Prá Cá", "Casa de Marimbondo" e "Escadas [da] Penha". Em "O Mestre Sala dos Mares" a colaboração do afinado coral de Joab e em "Escadas da Penha" de Raymundo Bittencourt. Para completar tanto bom gosto, uma capa magnífica - séria candidata a melhor do ano - criado por Glauco Rodrigues, que também planejou o prático encarte, com as letras das músicas. Um disco perfeito, realmente indispensável para quem se interessa pelo que existe de melhor em nossa música contemporânea popular.
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Alfredo Corveto, de promoção da RCA Victor, em agradável bate-papo há alguns meses nos forneceu interessantes dados sobre Nelson Gonçalves. Por exemplo, em 36 anos de RCA Victor - a serem completados no próximo dia 4 de agosto não é somente o maior campeão de vendagem de discos, como o artista que [possui] mais lps em catálogo - cerca de 30, todos vendendo bastante - record que poucos outros cantores, em todo o mundo conseguiram. Com um agenda de compromissos artísticos repleta por mias de um ano, vendo seus lps esgotarem-se nas lojas, Nelson Gonçalves vem tentando, nos últimos 6 anos, conseguir uma nova faixa de público. Assim, pouco a pouco, vem mesclando seus lps (faz uma média de 2 a 3 por ano) com músicas de melhor nível do que as estandardizadas canções de Adelino Moreira e Caterva que durante 30 anos lhe garantiram muito dinheiro e sucesso junto às camadas populares, mas e fizeram um intérprete menor perante os círculos mais exigentes. Assim, procurando atingir uma faixa de consumidores que sempre manteve-se impermeável ao seu êxito popularesco, Nelson também tem tido o cuidado de não desprezar os seus fãs da fase Adelino Moreira. Este delicado e inteligente trabalho tem agora um álbum marcante ("Nelson de todos os tempos" Victor, 110.0006, março/75), onde o produtor Carlos Guarany soube dosar as duas fases de Nelson: cinco músicas do velho Nelson, das madrugadas, boêmias e dor-de-cotovelo; sete outras, de melhor nível, com autores aceitos em diversas faixas de idade - desde os jovens Roberto/Erasmo Carlos ("Amada Amante") até veteranos admiráveis como Lupiscinio Rodrigues e Benedito Lacerda.
Uma coisa é inegável na carreira de Nelson Gonçalves: sua belíssima voz. Durante anos, lamentou-se que ele escolhesse tão mau seu repertório, prejudicando uma carreira brilhante em termos artísticos. Felizmente, como acima nos referimos isso agora já não mais acontece. E neste "Nelson de Todo os Tempos"', houve um esforço especial de uma equipe do primeiro time para obter o melhor rendimento. Assim, a direção do estúdio foi entregue para Severino de Araujo Silva Filho, 46 anos, paranaense, orquestrador e regente (marcou época com sua Orquestra Tabajara).
Severino Filho fez ainda os arranjos e regências para cinco faixas: "Revolta" (Nelson Gonçalves/Raul Sampaio), "Meu Dilema" (Adelino Moreira), "Amada Amante" (Roberto/Erasmo Carlos), "Mulher de Luxo" (Newton Teixeira/Edelyr Gameiro). O maestro Carlos Monteiro de Souza, 58 anos, fluminense, músico, advogado, pianista, violonista e violinista fez os arranjos para "Viagem" (João de Aquino/Paulo Cesar Pinheiro), "Como Vai Você" (Antonio/Mario Marcos), "Quem Há de Dizer" (Lupicinio Rodrigues/Alcides Gonçalves) e "Caminhamos" (Herivelto Martins). Finalmente, Carioca (Ivan Paulo da Silva), 65 anos, arranjador e maestro, cuidou dos arranjos e regências das músicas "Orgulhosa" (Adelino Moreira/Mario Rossi), "De Papo Pro Ar" (Joubert de Carvalho/Olegario Mariano), "A Volta do Boêmio" e "Professora" (Benedito Lacerda/Jorge Faraj), 33 músicos, entre profissionais do mais alto nível - como o violonista Luiz Roberto (ex-Os Cariocas), Copinha (flauta), Heraldo (pistão), Zé Bodega (sax-tenor), participaram desta gravação cuidadosa, exemplo de boa produção. A cada dupla, em suas páginas anteriores, apresenta seis fotos de Nelson Gonçalves em diversas etapas de sua carreira. Um disco que reconcilia Nelson Gonçalves com frentes até hoje hostis ao seu trabalho e não decepcionará os seus fãs permanentes. O que significa que deverá vender muito. O que, aliás, acontece com todas suas gravações.
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