João, jazzístico, genial, internacional, maravilhoso
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 22 de fevereiro de 1987
"Quem quer viver um amor
Mas não quer suas marcas
Qualquer cicatriz
Ah, ilusão, o amor
Não é risco na área
Desenho de giz"
("Desenho de giz" João Bosco/Abel Silva)
A voz, um instrumento. As palavras, uma peça de ourives. Trabalhadas à exaustão. Perfeitos cristais. Diamantes transparentes e preciosos.
O criador que se recusa a aceitar a criatura definitivamente como forma perfeita. Assim buscando sempre novas formas, mergulhando no mais profundo dos sentimentos - dando vida e calor a imagens que, para outros, seriam apenas formas bem acabadas.
Eis a sensação que passa, na pele, na sensibilidade, a atenta audição de "Ai Ai Ai de Mim" (CBS, dezembro/86), o último disco de João Bosco. Já de algum tempo que este mineiro de Ponte Nova, 40 anos, vem surpreendendo a quem o conhecia apenas como um compositor de melodias extremamente bem definidas e que encontraram em Aldir Blanc, 42 anos, ex-médico psiquiatra, o letrista perfeito. Se "Dois Pra Lá, Dois Pra Cá", "Kid Cavaquinho" e "Mestre-Sala dos Mares" podem ter caído no fácil sucesso graças a interpretações definitivas de Elis Regina e mesmo Maria Alcina, na verdade Bosco nunca foi um compositor limitado a formas estandartizadas. Muito pelo contrário, em seus tempos de estudante da Escola de Minas, em Ouro Preto, das primeiras parcerias com Vinicius de Moraes (que, de passagem pela cidade, encantou-se com sua musicalidade) nasciam já composições como "Samba do Pouso", "Rosa dos Ventos" e "O Mergulhador" que, permanecendo inéditas, mostram (aos raros que a elas tiveram acesso), a linha já inquieta de compor/interpretar que Bosco tinha há quase 20 anos.
"Agnus Sei", que Sergio Ricardo escolheu para dividir com "Águas de Março", de Antonio Carlos Jobim, o primeiro "Disco de Bolso", editado através do Pasquim, em 1972, era outra surpreendente inovação. Tão moderna que, na época, chegou até a ser malhada em programs de rádio e televisão. Pouco depois, gravando seu primeiro LP (RCA, 103.0062), Bosco trazia outras surpresas, como a concretista "Amon Rá e o Cavalo de Tróia" em parceria com Paulo Emílio que nos anos seguintes ficaria um tanto eclipsado por Aldir Blanc. "Angra", desta mesma época, entusiasmaria músicos da sensibilidade de Luisinho Eça, que ao retomar o Tamba Trio (fazendo sua rentrée nacional no Teatro Paiol, agosto/72), incluiria aquela composição, com destaque, no repertório. Tanto a forma com que o Tamba Trio retornou, como "Angra" foram pouco compreendidas na época...
Nestes últimos15 anos, Bosco trilhou inúmeros caminhos musicais. Requisitado como autor pelas superstars da canção (Elis, Simone, entre outras), desenvolvendo músicas sem adjetivações/classificações - pela própria dimensão criativa de cada uma, tornou-se justamente por ser um compositor independente de classificações, um dos mais fortes sustentáculos em uma década e meia de idefinições e consumismos sonoros.
Em cada álbum de João Bosco é sempre possível localizar aquela dimensão de artista consciente de uma visão ampla, panorâmica e universal de sons. O que o fez mergulhar em raízes afros, viajar a temas do passado e do presente, desenvolver desde crônicas do cotidiano ("De Frente Pro Crime") - temas sociais ("Violeta do Belford Roxo" e "Rancho da Goiabada" ) ou a propor uma revisão biográfica do marinheiro João Cândido no samba-de-enredo (sem ser para Carnaval) "Mestre Sala dos Mares".
Sim! João Bosco - e nisto entende-se seus (poucos) parceiros, especialmente Blanc e Emilio - é um compositor que comporta hoje, mais do que nenhum outro, ensaios e mesmo teses em torno de sua obra, suas andanças sonoras, seu universo cósmico e amplo.
Tal como Djavan que se volta cada vez mais a uma ourivesaria da perfeição/junção voz/letra/música, João Bosco também tem uma evolução que, antropofagicamente cada vez mais negra e de raízes, conquista o Exterior - haja vista sua participação em festivais de jazz como de Montreaux, concertos-solos de Paris (no L'Olympia, dividindo uma noite com outro virtuoso homem-orquestra, Bob McFerrim) a Tóquio.
Em seu álbum de encerramento do contrato com a Barclay/Poligram ("Cabeça de Nego"), Bosco levou ao máximo sua voz/violão em uma linha direta Brasil/África. Agora, iniciando uma fase ainda mais internacionalizante, no seleto grupo de superstars da CBS, Bosco alterna momentos do melhor romantismo - mas sem pieguices, sem bolor (embora com toques de bolero, que ele tanto curte), como no "Desenho de Giz" (parceria com Abel Silva), "em busca da convivência amorosa com as grandes canções de Tom Jobim e Dolores Duran", a picaresca "As Minas do Mar", que por falar em pênis e seios na (excelente) letra de Aldir Blanc teve sua radiodifusão proibida.
Um ótimo texto de Cleusa Maria, que acompanha o álbum (ao menos destinado a imprensa) faz colocações precisas sobre cada faixa, a participação de músicos americanos como Ronnie Foster (pilotando o DX -7), Harvey Mason (bateria) e especialmente David Samborn (saxofone), integrando-se a brasilidade de Nico Assunção (baixo), Marçal Jr. e Eduardo Del Barrio (percussão), presentes em quase todas as faixas.
É necessário ouvir repetidas vezes este disco de Bosco. Um elepê-jazz na proporção em que se abre para múltiplas (e coloridas) leituras, seja na revisão que faz do "Bolero de Ravel" (compositor que sempre admirou por ter se inspirado nas habanas de cubanas), ou na interpretação de "Pirata Azul" (este uma parceria com o baiano Capinam), no qual voz (Bosco) e sax (David Sanborn) se afinam num mesmo grito, esganizando tanto à procura da felicidade, tanto no azul como no blues, como no amarelo fogo das línguas de sol num país tropical. Em "Eu e a minha guitarra" é João violonista, espanhol forte em sua colorificação sonora. "Angra", de 1973, é regravada com nova leitura e, no encerramento uma nova obra-prima, "Dores de Oratórios". Uma cena mineira, memória de infância, lancinante, suplicante...
Discos como "Ai ai ai de Mim" não se esgotam num review, numa audição. Como os clássicos do jazz permanecem para serem ouvidos (e estudados) sempre. João Bosco, mais coerente, mais profundo, melhor do que nunca.
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