Beth, o samba com todo o romantismo
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 22 de fevereiro de 1987
Beth Carvalho continua a mesma. Isto é, maravilhosa!
A ironia do pagode de "Corda no pescoço" (Almir Guineto/ Adolfo Magalha), falando que "o povo como está/ Está com a corda no pescoço/ É o dito popular/ Deixa a carne e rói o osso", ou o romantismo de mais um inédito do grande Cartola (Agenor de Olveira - 1908-1980), em parceria com Regina Werneck (ex-Quaterto em Cy), no belíssimo "Espero por ti".
"Mesmo sem saber/ Se virás um dia
Eu espero por ti/ confiante e só aqui".
Elisabeth Santos Leal de Carvalho, carioca de Gamboa (5/5/1946), dedica este seu novo LP ("Beth", RCA, dezembro, 86) a Nara Leão, "a quem sempre admirei por ter buscado o compositor do povo, cantando suas tristezas e alegrias". Como Nara, Beth mesmo crescendo na zona Sul do Rio de Janeiro, também soube buscar nos morros, no subúrbio, os grandes compositores. Nara, há 23 anos, foi a pioneira em valorizar Cartola, Zé Ketti, João do Valle e tantos outros. Beth, surgindo nos shows de Bossa Nova e entrando em 1965 com um compacto simples ("Por quem morrer de amor", Menescal/Boscoli), se voltou aos sambas de raízes, especialmente a partir do show "Hora e Vez do Samba", que fez com Ze Ketti e Os Cinco Crioulos (que haviam aparecido em Rosa de Ouro).
Belíssima voz, cuidadosa em seu repertório, Beth construiu uma carreira da maior dignidade, enriquecida especialmente a partir dos anos 70, quando fez "Canto para um novo dia" (Tapecar, 73), no qual destacava "Folhas secas" (Guilherme de Brito/Nelson Cavaquinho).
Assim, nesta última década e meia, Beth passou a identificar músicas de qualidade. Primeira cantora de prestígio a se voltar para o pagode - hoje altamente mercantilizado e consumido - Beth sabe como nenhuma outra cantora valorizar os mais simples sambas em belíssimas canções, que sem perder a batida, o ritmo, de samba,. ganham uma dimensão extraordinária em sua voz e com os arranjos esmerados de Ivan Paulo, Leonardo Bruno e Geraldo Vespar que dividem os trabalhos neste disco. O uso de cordas (como em "Fogo de saudade" , Sobrinha/ Adilson ou "Espero por Ti") coral ("Coisas de Pele", Jorge Aragão/ Acyr Marques), "Falso Reinado", de Zé Roberto, Adilson Bispo; "Eu só peço a Deus", León Gieco/ Raul Ellwanger; ou mesmo palmas ("Caxambu II"), dão uma moldura magnífica a cada uma das faixas. A voz de Beth é envolvente - ela consegue ser profundamente romântica, esfusiantemente sambista ou mesmo social, integrando neste seu novo disco (seguramente, estaria em nossa lista dos dez melhores de 1986, se o tivéssemos ouvido em dezembro) a latinidade de Mercedes Sosa em participação especial em "Eu só peço a Deus".
Lena Frias, jornalista e estudiosa de MPB, no belo texto de encarte lembra que só uma cantora da dimensão de Beth ousaria reunir num mesmo elepê Mercedes Sosa e Zeca Pagodinho (participação especial na faixa "Dor de Amor", Arlindo Cruz/Acyr Marques/ Pagodinho). Beth faz mais: conjuga neste mesmo disco um clássico intimista da Bossa Nova ("Chega de Saudade", Tom/Vinicius) com a cozinha ritmica nervosa e extrovertida, típica das brincadeiras de terreros. E a introdução da faixa, com cordas, é magnífica.
Fazer coisas assim exige, como bem diz Lena Frias, "muita loucura ou muita certeza. E muito cacife..." Beth, neste seu 15º elepê em 21 anos de carreira, reafirma a loucura, a certeza e o cacife. O que, aliás não chega a ser uma novidade: durante duas décadas de estrada, ela vem ousando, divulgando, propagando as diversas cadências do samba e as diferentes rimas, sotaques e ritmos brasileiros. Gravando os melhores (e muitas vezes mais esquecidos) compositores, integrando-se às raízes - especialmente a partir de 1977, com seu encontro com o Bloco Carnavalesco Cacique de Ramos, da Zona da Leopoldina.
Beth Carvalho é uma estrela-guia, não só do pagode mas da própria MPB. E a beleza deste seu novo álbum, produção esmerada de Renato Corrêa, comprova que ela continua, segura, no "pódium" da melhor MPB.
FOTO SEM LEGENDA
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