Falta música carnavalesca mas temos a Beth e a Lecy
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de fevereiro de 1990
Nem adianta lamentar e chorar pitangas! Estamos no mês do Carnaval, faltam 4 dias para a folia começar oficialmente (já que os bailes são antecipados) e o panorama musical parece ignorar aquela que já foi a maior deflagradora da criação popular deste país que Jorge Amado chamou "do Carnaval". Com exceção dos sambas-de-enredo das escolas do Rio de Janeiro, grupo A, que num elepê BMG/Escola de Samba Ltda., patrocínio da cerveja Kaiser, está nas lojas há mais de 90 dias (e estimulados pelos vídeoclips da Rede Globo) - praticamente nada mais existe.
No máximo, alguns elepês de sambistas conseguem ganhar algum espaço na cada vez mais colonizada programação das emissoras - especialmente na ditadura das FMs que, com suas orientações pasteurizadas e dominadas por marketings de estranhos interesses, sufocaram a música carnavalesca.
Mesmo uma sambista da dimensão de Beth Carvalho, belíssima voz, bom repertório, com seu lp "Saudades da Guanabara", lançado à cinco meses pela Polygram, não teve a cobertura merecida, enquanto a guerreira Lecy Brandão é uma das poucas resistências no desfalcado elenco da Copacabana (lp "As coisas que mamãe me ensinou"), uma gravadora nacional que resiste aos trancos e barrancos.
Agepê (Antonio Gilson Porfírio, 45 anos), o sambista que conseguiu enriquecer com o samba-erotismo explícito, felizmente abandona este marketing caça-níqueis, com o qual tem provocado orgasmos em coroas mal-amadas de ambientes chiques (como nas temporadas do Scala, RJ) e busca bons compositores para melhorar seu último elepê ("Cultura Popular", Polygram). Uma respeitável edição póstuma, o volume dois de "Branca Mete Bronca!" que o percussionista-cantor Branca de Neve (Nelson Fernandes Moraes), estava gravando para a Continental, quando, em 12 de maio de 1989 morreu aos 37 anos.
Dois excelentes compositores-intérpretes - Mestre Marçal ("Pela Sombra", BMG/Ariola) e Dunga ("Pedra Preciosa", EMI-Odeon) - são também presenças vigorosas nesta faixa de música, na qual a RGE continua a ter uma crescente liderança, com sambistas como Almir Guineto ("Jeito de Amar"), Zeca Pagodinho ("Boêmio Feliz") e o sempre afinado grupo Fundo de Quintal ("Ciranda do Povo").
GRANDE BETH!
Anunciando "Saudades da Guanabara" como "síntese de minha carreira" neste segundo lp que faz na Polygram, Beth Carvalho (Elizabeth Santos Leal de Carvajo, RJ, 5/5/1946) amplia o leque de sons e ritmos que desde o início (1961/65) de sua carreira estiveram presentes em seu trabalho, além do capricho da parte harmônica e, como sempre, um cuidado absoluto na escolha do repertório. Chegando ao 19º lp de uma carreira, Beth faz um disco animado mas reflexivo, dizendo por exemplo na canção-título (Moacyr Luz/Aldir Blanc/Paulo César Pinheiro), um recado bem irônico:
Brasil, tira as flechas
do peito do meu padroeiro
que São Sebastião do Rio de Janeiro
ainda pode se salvar
Beth passa, em forma de samba, idéias de ecologia e da luta dos índios ("Os Brasíadas", de Paulinho Soares), numa mistura de sons indígenas e cantos de pássaros, a cargo do grande percussionista Robertinho Silva tendo como introdução "O Canto do Pajé" do mestre Villa-Lobos. "Apartheid Não" Serginho Meriti/Arlindo Cruz/Franco) discute a questão da discriminação racial, enquanto "Vaqueira" (Bororó Felipe/Edmundo Souto/Nei Lopes) é uma catira, um ritmo do Centro-Oeste. "Sonhando eu sou Feliz" (Arlindo Cruz/Marquinho PQD/Franco) volta ao samba, enquanto "Não me faz de Ioiô" (Arlindo Cruz/Franco) é um interessante jogo-de-palavras. Mas há outros grandes momentos como "Bota Lenha na Fogueira", "Até Quem não é", "Meu Samba Diz", "Sem ata e sem Defesa" e, especialmente "Sorriso de Criança" (Ivone Lara/Delcio Carvalho), em que Beth divide a faixa com a divina Elizeth Cardoso (pela primeira vez no disco de uma outra cantora).
Lecy Brandão (da Silva, RJ, 12/9/1944) é, além de cantora, também uma excelente compositora. Só que até hoje, injustamente, não teve a oportunidade de uma projeção maior, apesar de há 17 anos já ter emplacado um belo samba ("Quero Um", parceria com Darci da Mangueira, que na voz de Renata Lu venceu o II Encontro Nacional do Compositor de Samba). A Lecy compositora está presente em cinco faixas de "As Coisas que Mamãe Ensinou", entre as quais o suave "Jeito de Apaixonado", parceria com Zé Maurício, com quem também divide a faixa-título. Bons sambistas, como Nei Lopes/Cláudio Jorge ("Igualzinhos, não"), ao lado de experiências afro ("Yáfrica", Osmarosman/Hélio Makumba) e até um novo samba de Jorge Benjor (ex-Ben) ("Um Poeta Amigo Meu") estão neste lp, que encerra com "Saudação a Oxum", numa adaptação da própria Lecy.
LEGENDA FOTO - Beth: cantando o Brasil.
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