Denise/Elis, o canto do gesto
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 12 de novembro de 1986
"Quando, certa manhã, acordei e ouvi um pássaro cantar, compreendi bem: já não tinha mais medo da morte. Porque nada me poderá faltar. Se eu mesmo faltar. Então consegui me alegrar com todos os cantos dos pássaros depois de mim"(Bertolt Brecht, 1898-1956)
Ao longo de exatos 70 minutos, só uma vez se ouve a voz humana. Em gravação, justamente a poesia de Brecht - acima transcrita - na qual o mais admirável dos dramaturgos contemporâneos fala de amor, pássaros e vida.
Foi a maneira que Denise Stocklos escolheu para colocar, implicitamente, uma mensagem auditiva dentro de um espetáculo de extrema densidade e com a síntese perfeita que a faz hoje a mímica mais expressiva do Brasil - e uma das (poucas) grandes atrizes nesta técnica em todo o mundo.
Após assitir a "Elis Regina" (única apresentação no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto na última segunda-feira, 10; temporada no Teatro Sergio Cardoso, São Paulo, 21 a 23 de novembro) fica uma válida hipótese: se algum diretor de mínima visão e sensibilidade assistir algumas das apresentações que Denise estará fazendo no Teatro La Mamma, no Greenwich Village, em Nova Iorque, a partir de dezembro, não se surpreendam se em breve a carreira desta artista paranaense passar a ter os Estados Unidos como eixo. Afinal, hoje Denise é uma artista completa, dominando uma técnica dificílima e que com a sua experiência de atriz vinda dos tempos do grupo Escala, em Curitiba, a fazem uma performer-women capaz de vencer frente a qualquer platéia do mundo.
Tudo parecia colaborar contra a única apresentação que Denise fez na segunda-feira. A data, iníncio de semana, a pouca divulgação do evento e, sobretudo, a chuva chata e contínua que caiu sobre a cidade. Entretanto, a platéia lotada por um público entusiasmado que, em várias casiões, chegou a interromper certos números para manifestar os aplausos, como poucas vezes se viu/ouviu no Teatro Guaíra!
Partindo de uma idéia simples - criar um espetáculo em que a linguagem dos gestos se integrasse a música, - Denise voltou seu olhar para a cantora gaúcha Elis Regina (Carvalho da Costa, Porto Alegre - 1945 - São Paulo, 1981), ídolo de sua adolescência e que nunca chegou a conhecer pessoalmente ("quando tinha 14 anos, vem de Irati para assistir sua primeira apresentação em Curitiba"). Estreando informalmente em janeiro, quando das homenagens pelo 5º ano da morte de Elis, o espetáculo emocionou a todos que o viram. O ator Paulo César Pereio fez questão de ter uma participação especial - dançando com Denise na cena do "Falso Brilhante". Christiane Torlone colaborou na criação da iluminação e palpitou na escolha de algumas músicas. Denis Carvalho chegou a fazer sugestões cênicas. Entretanto, o espetáculo pertence basicamente a Denise. Ela é a performer única e perfeita deste momento de emoção, magia e sensibilidade no palco.
As lágrimas correm pelos olhos e um nó aperta a garganta já na abertura, onde ao som da valsa "Fascinação" (F. D. Marchetti/M. D. Ferroudy), Denise surge no imenso palco do Guaíra, toda de preto, bela replicante à la Blade Runner. Os gestos falam e explodem emoção e paixão ao som de "Bodas de Prata" (João Bosco/Aldir Blanc), "Aos Nossos Filhos" (Ivan Lins/Victor Martins) e "Maria, Maria" (Milton Nascimento/Fernando Brandt), três clássicos da MPB que jamais terão interpretações maiores daquelas deixadas por Elis. A força vocal de Elis Regina, a leitura dramática da poesia de Blanc/Martins/Brandt faz com que estes três momentos componham um painel perfeito - e na qual a tristeza vem de se saber que jamais (ou dificilmente) aparecerá uma cantora como a Pimentinha - que por sua própria contemporaneidade e vivacidade, nem sempre tem sido (re)avaliada na dimensão merecida.
Se a emoção inicial já á imensa, quando Denise cria um clima de imagem cinematográficas ao som de "Na Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso), o teatro vem abaixo de aplausos. Em gestos de câmara-lenta, Denise é o gestual equilibrado numa linha imaginária e que sem deixar alguns metros do imenso palco inunda o espaço (quase diria a tela) com imagens da maior perfeição. Basta este momento para dar-lhe a condição de artista pronta e completa para aplausos internacionais.
Uma nostálgica e emocionante volta aos anos juvenis da Bossa Nova, com a releitura de "Corcovado" (Antônio Carlos Jobim/Vinícius de Morais), que antecede ao humor criativo e chapliniano.
Depois da emoção, o riso. E o riso inteligente é provocado pela criação ao som de "Falso Brilhante" (ou "Dois Pra Lá, Dois Pra Cá") chumbado a um potpourri de anos dourados no qual a jovem guarda de "Curvas da Estrada de Santos" funde-se a uma rápida e sutil manifestação feminista ("Essa Mulher"), antes do mergulho jovem com uma fase extremamente desconpromissada de Elis Regina, em 1962, quando gravava (na Continental) versões que Fred Jorge fazia de ingênuos rocks como "Baby Face" (David Akst) e "Puppy Love" ("Garoto Último Tipo", Paul Anka), aos quais se complementam a "Garota de Ipanema" (Tom/Vinícius) e "Menino do Rio" (Caetano Velloso).
Nestas alturas, Denise já fez o expectador viajar pelo mundo da memória pilotando uma asa delta de emoção. Bruxa (ou fada?) mágica dos gestos e emoções. Denise, entretanto reserva ainda uma última carga emotiva ao pinçar "Primeiro Jornal" (Suely Costa/Abel Silva), "Menino", "Ao Meu Amor" para preparar o grande final - que, tão apropriadamente, incluiu a passargada de Tom/Vinícius traduzida em "Retrato em Branco e Preto" e chegar ao espiritual "Se Eu Quiser Falar Com Deus" (Gilberto Gil), momento em que a voz de Denise, em gravação, lê a poesia de Bertolt Brecht falando na beleza da redescoberta da vida.
Denise soube escapar das armadilhas que o óbvio colocaria num roteiro menos inspirado. Evitou, por exemplo, um discurso feminista e panfletário, assim como afastou-se da tentação de com "O Bêbado eo Equilibrista" (Blanc/Bosco), repetir um protesto político hoje desnecessário mas que seria válido há 5 anos passados.
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Gostaria que me informasse o email da Denise Regina (ou do seu empresário), para enviar uma canão que compus especialmente para ela (mp3).
Grato.
Nilson
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