O grande encontro de Senise e Peranzetta
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de agosto de 1990
Há algumas semanas, registramos em nossa coluna "Tablóide", o entusiasmo com que Mauro Senise, após o concerto que havia apresentado no Paiol, ao lado de seus companheiros do Cama de Gato, nos falava de seu novo álbum, "Uma Parte de Nós", que havia gravado com outro virtuose, o tecladista Gilson Peranzetta, arranjador, compositor, que finalmente vem tendo seu talento devidamente reconhecido, fazendo gravações solo ou dividindo afetuosos álbuns com músicos da dimensão do violonista Sebastião Tapajós (com quem há 2 semanas, apresentou um belíssimo concerto durante o X Festival de Música de Londrina) e, agora, este belo álbum com Mauro Senise, edição da Visom, etiqueta que a exemplo da Som da Gente, Kuarup, Chorus e da nova Caju (ainda com seu primeiro pacote inédito, mas que promete muito), vem fazendo excelentes lançamentos instrumentais.
Sobre "Uma Parte de Nós", poderíamos aqui repetir elogios num breve review. Entretanto, numa homenagem a um jornalista curitibano, Roberto Mugiatti, que ao lado de uma das mais brilhantes carreiras feitas na imprensa brasileira (há anos é editor chefe da "Manchete"), tornou-se um dos maiores críticos de jazz e música instrumental, preferimos abrir nosso espaço para transcrever o belíssimo texto em que fala deste encontro musical de Senise e Peranzetta. Portanto, é sua a palavra - lembrando, que nos anos 50, quando morava em Curitiba e escrevia na "Gazeta do Povo", Roberto foi o primeiro profissional a falar sobre o que havia de melhor no jazz moderno, na época, em nossa imprensa.
"Os dois trabalham com os dedos (E com a cabeça e o coração também...). poderiam até se chamar Gilson Senise e Mauro Peranzetta, tal o seu entrosamento. Foi um caso de atração à primeira vista, ou melhor, à primeira audição. Por acaso, Gilson e Mauro tocaram juntos no projeto Circuito Banco Nacional de Música Instrumental. Se deram tão bem que resolveram levar adiante o duo piano mais sax/flauta. Em fevereiro de 1990, num estúdio no Rio, Peranzetta e Senise, em doze horas de gravação, já tinham seu primeiro disco nas mãos. Gravaram da maneira mais difícil, pelo sistema PCM digital, sem poder recorrer a cortes, emendas ou dublagem, transmitindo toda a espontaneidade e emoção de uma apresentação ao vivo.
O jazz é, obviamente, o ponto de referência principal no trabalho de Gilson, de Mauro e de toda a sua geração da música instrumental brasileira. Mas é bom clarear algumas noções do que seja realmente o jazz. Há o mito da improvisação, por exemplo. Nem todo jazz é necessariamente improvisado: pensem nas nuances tonais de Duke Ellington e de Stan Kenton. Este disco de Gilson e Mauro é, às vezes, surpreendentemente econômico em improvisos. Ouçam o "Carinhoso" do Pixinguinha e "O Mundo é um Moinho" do Cartola. São melodias tão bonitas que basta a sua exposição. Mas o que Gilson e Mauro oferecem não é uma simples leitura, mas uma releitura, rica em entrelaçamentos de vozes, sutilezas tonais e explorações de timbres (Reparem na dinâmica do piano acústico de Gilson em "Carinhoso", ora erudito, ora bluesy, com um generoso vigor acústico em todas as faixas. Reparem nas alternâncias do alto de Senise em "Carinhoso", ora sedoso, ora rascante, sempre lírico). O "Moinho" de Cartola gira bonito, lembra um dos mais belos temas do jazz - "The Peacocks" de Jimmy Rowles - pelos sopranos de Wayne Shorter ou Brandford Marsalis. Com a diferença de que, como se trata de um Cartola, Mauro injeta uma certa brejeirice, um tom chorão, sem chegar jamais ao lacrimoso. Em "Uma Parte de Nós", a faixa título, dedicada por Gilson a seus filhos, flauta e piano evocam o clima nostálgico da moda antiga, num tema voltado mais à exploração de "moods" do que improviso. Estas faixas destacam os arranjos de Peranzetta e a capacidade do duo de conseguir a variedade e riqueza que muitos músicos só alcançariam com o recurso de um grupo maior, ou até de uma big band.
Uma palavra também sobre o Gilson Peranzetta compositor (seis das nove faixas levam a sua assinatura): seus temas, tecnicamente complexos, são de uma clareza cristalina, encerram uma lógica implacável. E aí entra o talento de Mauro Senise, o leitor privilegiado, capaz de decodificar os textos musicais mais difíceis - e, também o compositor instantâneo, no momento das improvisações. Improvisações que - se não ocupam todas as faixas - são altamente eficazes e vibrantes quando surge a sua hora.
Voem com Mauro (a mil) nos solos de "Na Rede pelo Lado de Fora" (sax alto) e em duas fantásticas incursões da flauta - em "Casa Forte", de Edu Lobo, e em "Mauro, se Liga", uma convocação de Peranzetta ao suingue - amostras de que Senise, além do seu nome como saxofonista, é um dos flautistas mais completos da praça. Em "Luis, Eça é pra Você", ainda um outro plano em que o ouvinte pode se deleitar com o duo: os incríveis uníssonos, com uma precisão que só pertence a poucos (embarquem na trip do bop-bossa "Na Rede pelo Lado de Fora").
E há mais, muito mais. É só escutar e fazer deste disco, também, "Uma Parte de Nós".
(Roberto Mugiatti)
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