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Aramis

O passado que condena

O melhor filme do ano em exibição neste apagar das luzes de 1990, pessimamente lançado e ainda prejudicado pelas suspensões de várias sessões dos cinemas do circuito da Fucucu - justificáveis nas noites de 24 e 31, inexplicável na sexta-feira, 22, quando, sem qualquer aviso ao público, os cines Ritz, Luz, Groff e Guarani fecharam suas portas (soube-se, depois, que a Fucucu promoveu um banquete de confraternização de seus muitos funcionários - o que não justifica que um serviço de atendimento ao público seja cancelado, ainda mais sem qualquer aviso anterior). Assim, é de se esperar que os programadores (sic) do circuito oficial, tão trapalhões em suas escolhas, tenham o bom senso de manter "Uma Cidade sem Passado" no mínimo em cartaz durante o mês de janeiro. Afinal, trata-se de uma obra prima do cinema contemporâneo, citação obrigatória na listagem de todos os críticos e cinéfilos que já assistiram - conforme publicaremos no suplemento especial do "Almanaque" no próximo dia 6 - na 25ª edição deste referendum. Prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim à Michael Verhoeven, "Das Schreckliche Madchen" é daqueles filmes-impacto, realizados com extrema competência, abordando uma temática universal, que sempre deve ser enaltecida: a coragem pela busca da verdade. A história de Sônia (Lena Stolze), uma jovem alemã que decide enfrentar medos, preconceitos e, sobretudo, a hipocrisia de uma cidade típica alemã para resolver o passado que todos desejavam ver sepultado e esquecido, transmite uma emoção imensa à quem é capaz de entender a importância de que a verdade prevaleça nesta nossa época de fezes, traições e oportunismos no salve-se quem puder da busca do sucesso a qualquer preço. Poderia se dizer até que Michael Verhoeven teve a coragem de um Costa-Gravas - de quem aliás, estava em exibição (Ritz, apenas 2 semanas) o excelente "Muito mais do que um Crime" (The Music Box, 1989), criminosamente retirado de cartaz. O nazismo, em seu passado e suas (terríveis) lembranças estão presentes nos dois filmes. No filme de Gravas - premiado no Festival de Berlim - 1990 com o Urso de Ouro - é a história de uma advogada que ao defender o seu pai na acusação de nazista na Hungria, começa a investigar os fatos e chega a uma terrível conclusão. Num ensaio em maior espaço poderia-se aprofundar as relações destes dois enfoques - ambos baseados em fatos verdadeiros, pois embora "The Music Box" não localize exatamente os acontecimentos verdadeiros que motivaram ao roteiro, quem conhece a obra de Gravas sabe que não usa a câmara em vão. Verhoeven baseou-se num fato real ocorrido na cidade de Passau, embora, diplomaticamente, tenha colocado personagens e a cidade com outros nomes - mas a localizando na Bavária. O que importa é que toca o dedo na ferida e, neste momento de reunificação alemã, não teme em abrir o guarda-roupa do passado para denunciar a hipocrisia e o colaboracionismo de uma população civil. Já pela importância do tema abordado, o filme seria uma obra antológica mas como cineasta Verhoeven também extrapola: sua mão leve o faz criar seqüências de um set surrealista onde sofás voam através do mercado da cidade e o gabinete do prefeito parece um asilo - em contraposição ao arquivo que permanece inacessível a jovem Sônia, na busca de documentos, lembrando toques kafkanianos ("O Processo") visto na ótica de um Welles. Também a seqüência do julgamento (que não acontece) com imagens simbólicas de uma inquisição em que Sônia é a Santa Joana tem um impacto entre o belo e o satírico - aliás, dentro de um clima de um humor ácido, quase cínico, que marca todo o filme. O roteiro é perfeito: acompanhando a vida de Sônia e sua família (Monika Baumgartner, a mãe; Michael Gahr, o pai; Fred Stillkrauth, o tio religioso; Elisabeth Bertram, a enternecedora avó - que a estimula, indiretamente em seu trabalho), o filme se desenvolve em ciclos. A juventude, a descoberta de que poderia escrever um belo trabalho que lhe vale uma viagem a Paris - e a condecoração pelo prefeito da cidade; depois, a paixão pelo professor Martin (Robert Giggenbach), com quem casa e tem dois filhos e, finalmente, a decisão de, aceitando os riscos e sacrificando inclusive sua vida familiar, ir até o final do projeto para investigar o comportamento de sua cidade no III Reich. Um passado que ninguém quer recordar mas que a desafia. Se, na juventude, dá um tempo - para o casamento e a maternidade - retorna, já amadurecida, após cursar a universidade, para levar a sua obstinação até um final - que, quando todos imaginam como um happy end, termina numa grade interrogação - na simbólica "árvore da felicidade" - um totem para ser visto de muitas formas. Admiravelmente fotografado por Axel da Rocha, e com uma perfeita trilha sonora de Elmar Schloter / Nike Herting, esta produção que teve amplos recursos (o número de pessoas citadas no crédito é uma prova disto), com 57 personagens destacados, sacode o público, despertando corações e mentes. Embora seja local nos detalhes, seus temas mais amplos são universais - pois em Sônia - um hino de admiração à personalidade feminina, íntegra e corajosa - Verhoeven coloca um símbolo para servir de exemplo a pessoas de todo o mundo que acreditam na verdade. Uma obra prima, de visão indispensável.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
24
27/12/1990

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