O valor das chanchadas na revisão de Augusto
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 10 de março de 1990
Certas obras tornam-se famosas antes mesmo de serem escritas. Desde 1979 que o jornalista Sérgio Augusto, 48 anos, prometia um livro sobre a chanchada. Crítico de cinema desde o início dos anos 60, tendo passado pelos principais veículos brasileiros (do "Correio da Manhã" e "O Cruzeiro" a "Veja"), há anos um dos redatores especiais da "Folha de São Paulo", Sérgio é, como Ruy Castro, jornalista eclético, antenado com a produção cultural internacional e que, através de uma imensa informação (sua bibliografia é das maiores do país), viagens constantes ao Exterior, um texto delicioso, tem milhares de leitores-admiradores em todo o país. Acompanhando o cinema há mais de 30 anos, com uma visão histórica - e não nostálgica, apenas - de importância dos quadrinhos (tema do qual foi o primeiro jornalista a aceitar uma coluna especializada, no "Jornal do Brasil") ao rádio (sobre o qual constantemente produz matérias magníficas) era natural que seu livro fosse um dos mais aguardados. Assim, desde agosto do ano passado, quando, finalmente, "Este Mundo é um Pandeiro" (Companhia das Letras, 320 páginas) foi para as livrarias, recebeu uma cobertura raras vezes dadas a um livro sobre cinema.
É que além do prestigio que Sérgio Augusto mereceu dos meios da comunicação, há muito que o tema - a chanchada do cinema brasileiro - necessitava de uma reavaliação. Pelos textos que SA sempre escreveu (e muitos deles, foram publicados em O Estado, até há algum tempo), o público interessado culturalmente passou a ter em Augusto um excelente referencial, de forma que a oportunidade de conhecer o resultado, em livro, de anos de pesquisas e cuidadosa revisão de todos os filmes do período áureo da chanchada (1947/1961) que se salvaram da destruição, oferecia mesmo um material de indispensável conhecimento.
No Rio de Janeiro e São Paulo, paralelamente ao lançamento do livro foi promovida a mostra "Este Mundo é um Pandeiro", com exibição de filmes que possibilitam a que os jovens conheçam este gênero cinematográfico que por quase três décadas levava um público numeroso às salas que os exibiam. Um público hoje na faixa dos 50 anos, mas que mesmo assim tem uma simpatia para exemplos arqueológicos desta época, que vez ou outra podem ser apreciados no "Cine Brasil", programa que o jornalista e crítico Luciano Ramos produz aos domingos pela TV Cultura - São Paulo (em Curitiba, Canal 2), ou mesmo em exibições bissextas - como a que Valêncio Xavier, diretor do MIS-PR, promoveu nas vésperas do Carnaval, com "Aviso aos Navegantes", 1950, de Watson Macedo.
Embora algumas distribuidoras já tenham feito lançamentos esporádicos em vídeo, o melhor deste acervo - as produções da histórica Atlântida - ainda permanecem inéditos em cartuchos, podendo assim, dentro da busca frenética que se fez em torno de títulos nacionais para o cumprimento da lei de reserva de mercado, constituírem-se em boas alternativas para próximas edições.
É preciso ver as chanchadas com um entendimento histórico, procurando-se o quadro nos quais foram realizados - a vida política, o pós-guerra, o segundo governo de Vargas, os anos JK, período em que o gênero já entrou em decadência. Esteticamente, independente, obviamente que as chanchadas não resistem a uma revisão crítica - pois a própria crítica cinematográfica, mesmo de parte de profissionais da importância de Alex Viany, era, na época, implacável com as limitações dos filmes realizados por diretores como José Carlos Burle, Moacir Fenellon, Cajajo Filho, Luiz de Barros, Carlos Manga, Vitor Lima e Watson Macedo - o mais famosos de todos.
Hoje as chanchadas adquirem um sentido histórico, por trazerem em suas imagens gerações de artistas - tanto intérpretes como cantores e músicos (já que eram basicamente recheados de números musicais) que praticamente desapareceram: Marlene, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Joel e Gaúcho, Alvarenga e Ranchinho, Dick Farney, Nora Ney, Jorge Goulart, Ataulfo Alves, Dalva de Oliveira, Francisco Alves, Benê Nunes, Luiz Gonzaga, Doris Monteiro, Orlando Silva, Elizete Cardoso, Dircinha e Linda Batista, Herivelto Martins, 4 Ases e 1 Coringa, Jackson do Pandeiro e Almira, Mary Gonçalves, Bob Nelson e tantos outros.
Como observou Ruy Castro, o pandeiro da chanchada durou entre 1947/61, quase tanto, por exemplo, quanto a idade de ouro do musical da MGM, que começou em 1939 ("O Mágico de Oz") e começou a enfraquecer em 1955.
"Nesses 14 anos em que gozaram de boa saúde, as chanchadas foram altamente competitivas, num mercado bombardeado por uma média de mil filmes americanos novos por ano, entre curtas e longas. É verdade que além do seu charme carioca e das seqüências de carnaval, elas tinham um apelo comercial com o qual às vezes, nem os filmes de Cecil B. De Mille podiam competir: sua malícia era feita de encomenda para os adolescentes e analfabetos do Interior do Brasil", diz Ruy Castro. Numa época em que inexistia televisão e o cinema era a grande diversão, as chanchadas ilustravam as imagens dos ídolos do rádio - daí a profusão de números musicais na maioria das fitas. Houve mesmo quem fizesse aproximações deste ciclo com os musicais da MGM - sofisticados, luxuosos e que estavam em seu esplendor na época. Lucidamente, Sérgio prefere compará-las às "comediotas similares que Judy Canova estrelava na Republic. Com cantores e coristas tropeçando em gangsters bufônicos e empresários inescrupulosos". Uma comparação que cai no vazio para os brasileiros maiores de 40 anos que provavelmente nunca ouviram falar de Judy Canova e mesmo da Republic - o estúdio dos filmes "Z" de Hollywood - a tal ponto que era chamada de "Repulsive Pictures" - mas que hoje, também, tem sido reavaliados".
"Este Mundo é um Pandeiro", trazendo na capa uma justíssima homenagem ao maior comediante do gênero - Oscarito (Oscar Lourenço Jacinto da Imaculada Conceição Teresa Dias, 1906-1970), foi, em nosso entendimento, o mais importante livro sobre cinema brasileiro publicado em 1989. Tratado apenas anteriormente em "A Chanchada no Cinema Brasileiro" (de Afrânio Cattani e J. I. De Melo Souza, Brasiliense, 1983) e motivado ao pesquisador João Luiz Vieira, conservador da Cinemateca do MAM-RJ a tese "Riso Amargo" (até agora inédita, mas cuja publicação está prometida), o livro de Sérgio Augusto é uma celebração. Agora é torcer para que o jornalista - sempre ocupado, com vários projetos (atualmente trabalha numa biografia de Vinícius de Moraes, a ser lançada também, pela Companhia da Letras) reveja seus textos críticos de cinema e publique-os em breve. A bibliografia do cinema brasileiro precisa desta contribuição.
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