Os LPs de Guimorvan, Deodato, Grover, Ron e Freddie
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 15 de setembro de 1974
Por acreditarmos que as boas iniciativas, culturalmente válidas, merecem incentivo, promoção, divulgação e apoio independente de seus aspectos comerciais, voltamos aqui a destacar o trabalho do produtor José Rozemblit Sobrinho, que estruturando uma pequena etiqueta há menos de 5 anos - a Top Tape - se firmou a partir de 1972 como o mais ativo lançador de jazz contemporâneo, colocando ao alcance do público brasileiro principalmente a produção de Creed Taylor, da CTI Records, por onde tem aparecido tanta gente de valor, inclusive, o paranaense Airto Guimorvan Moreira - que finalmente via Top Tape, teve alguns de seus discos - "Fingers", "Free" e agora "Deodato In Concert Airto" - colocados ao alcance do público brasileiro.
Hoje vamos a um registro, bastante sucinto mas apenas com orientação principalmente aos leitores do Interior, interessados em saber o que a Top Tape colocou nas lojas nos últimos meses, álbuns bem produzidos, excelente apresentação e qualidade técnica que se igualam ao que de melhor existe em gravações estrangeiras.
AIRTO (GUIMORVAN MOREIRA) - Neste terceiro lp destacando o percussionista guarapuavano (atenção Prefeitura de Guarapuava, quando é que a cidade vai homenagear este moço que deu a maior projeção mundial para a nossa música?), o encontramos ao lado de outro músico brasileiro - o pianista Eumir Deodato, também hoje consolidado no mercado norte-americano. Airto tem feito dezenas de gravações na CTI Records, ao lado das grandes estrelas daquela gravadora mas aqui o temos num dos melhores concertos em que encontramos uma nova versão de "O Galho da Roseira", com o título de "Branches", de Hermeto Paschoal, numa duração de 8'50 minutos. Esta face do lp é completada por "Trompea" do próprio Deodato, ao longo de 7,14 minutos. No lado um, estão dois temas desenvolvidos por Deodato em outras gravações - "Do It Again" (Becker/Fagin) e "Spirit Of Summer" (do próprio Deodato), enquanto Airto retorna com a faixa "Paraná", de Hugo Fattoruso - pianista que o acompanha em seus solos, já conhecido da gravação do lp "Fingers". O guitarrista John Tropea acompanha Deodato em suas faixas, enquanto Flora e David Amaro na guitarra amparam as intervenções de Guimorvan. Um lp marcante, que nenhum fã de música moderna pode dispensar. Em especial se for paranaense!
E já falamos em Deodato, registre-se que após seu notável êxito na CTI Records, passou para a MCA Records, representada no Brasil pelas Gravações Chantecler, que lançou há 40 dias seu mais recente [álbum]: "Whirlwinds" (MCALP-600.079, julho/74). Depois dos arranjos de "Assim falava Zaratrustra" de Richard Strauss (1864-1949) e "Rapsody in Blue" de George Gershwin (1898-1937), Eumir Deodato apresenta neste seu novo trabalho uma adaptação inteligente do tema-prefixo de Glenn Miller (1904-1944), "Moonlight Serenade" - durante tantos anos o tema de encerramento diário das transmissões da rádio Guiaracá (hoje Iguaçu), no arranjo de Deodato em 8,27 minutos e comum notável aproveitamento de todas as seções da numerosa orquestra que lhe foi colocada [à] disposição para a gravação deste álbum, feito nos estúdios da CMI em Plant East, New York, há poucos meses. A segunda faixa é também uma adaptação de um clássico: "Ave Maria" de Franz Schubert (1747-1828), que pelo seu sentido religioso é uma das músicas mais conhecidas em todo o mundo. Pode-se opor restrições a trilha (de ouro) encontrada por Deodato, 31 anos, que começou tocando acordeon, aluno de Mário Mascarenhas e estreou há 15 anos, no Copa Golf, integrando-se, depois no grupo de Roberto Menescal e participando de todo o movimento da Bossa Nova. Nos Estados Unidos há 7 anos, desenvolvendo um trabalho de tanta aceitação quanto o de Sergio Mendes - mas numa linha de maior criatividade e menos comercialismo, Deodato é hoje um músico internacional. Inútil pretender de Deodato uma música brasileira: absorvido num violento esquema de consumo, ele tem feito concessões ao gosto americano mas, e aí que está o seu valor, tem procurado uma forma própria de (re)criação musical - que se lhe tem dado muitos (mil) dólares, também lhe trouxe algumas dores de cabeça - como o processo movido pelos herdeiros de Strauss, que não concordaram com sua adaptação para "Assim Falava Zaratrusta" - em 1965 já empregado em sua versão original por Stanley Kubrik na trilha sonora de "2001 - Uma Odisséia no Espaço".
Em seu lp, Eumir Deodato comparece com duas composições próprias: "Hava Strut" (4,41 minutos) e a música-título do lp, "Whirlhinds" (em parceria com John Tropea) (6,09'). No numeroso grupo de músicos convocados para a gravação deste lp - onde Deodato incluiu ainda "Do It Again" (Walter Becker/Donald Pagan) se destacam instrumentistas conhecidos como os trombonistas Urbie Green e Sam Burtis (solo em Havana Strut), o brasileiro Rubens Bassini na Congos & Bongos e o próprio Deodato além do piano, também na percussão em alguns números.
GROVER WASHINGTON, JUNIOR - Uma das muitas revelações que a CTI/Top Tape fez no Brasil no ano passado, em matéria de jazz moderno, foi do sax-tenor Grover Washington, Junior, e carreira tão recente que seu nome ainda não consta mesmo nas últimas edições da Enciclopédia de Jazz de Leonard Feather e mesmo na atualíssima "Biographical Dictionary of American Music", publicado por Charles Eugene Claghorn no final do ano passado. Mas isto não impede que o jovem e talentoso saxofonista já tenha três lps na praça - dos quais os dois mais recentes são "Inner City Blues" (OW 540) e "All The King's Horses" (OW 543), em ambos demonstrando o seu estilo suave e agradável, amparado em repertórios do melhor nível e contando com a participação de outros excelentes instrumentistas, entre os quais Airto na percussão. RonCarter no baixo e Thad Jones no pistão (este só em "Inner City Blues"). A seleção de "Inner City Blues" inicia com um personalíssimo arranjo para esta composição de Martin Gaye, de quem é também a terceira faixa do lado A: "Mercy Mercy Me" (The Ecology). O clássico "Georgia On My Mind" (Carmichael/Gorrell) entremeia as duas composições de Gaye, enquanto no lado B estão os felizes temas "Ain't No Sunshine (Better Days) de J. J. Johnson e Bill Withers, "Until It's Time For You To Go" de Buffy Sainte-Maire (1) e "I Loves You Porgy " de George e Ira Gershwin/DuBose Heyward, da ópera "Porgy & Bess". Já em "All The King's Horses", gravado entre maio/junho de 1972, e igualmente uma produção de Bob James, a seleção é das mais felizes, demonstrando o bom gosto e sensibilidade de Grover: "No Tears, In The End" (Ralph MacDonald/William Salter). "All The King's Horses" (Aretha Franklin), "Where Is The Love" (Ralph MacDonald/William Salter), "Body And Soul" (Green/Heyman/Eyton), "Lean On Me" (Bill Withers), "Lover Man" (Bob James/Davis/Ramirez/Sherman) e "Love Song 1700", adaptado pelo produtor James de uma canção de Henry Purcell (1659-1695), James é também o pianista nas duas gravações, onde Grover Washington Junior soube equilibrar um marcante grupo de instrumentistas, tanto no setor dos metais como no de cordas. O jazz de Washington, Jr., é um exemplo da criação cordial, de fácil comunicação mas que demonstra, em suas notas, as boas idéias e criatividade do instrumentista.
FREDDIE HUBBARD - Pistonista-pianista e também executante de fluorgelhorn, Frederick Dewayne Hubbard, nascido em Indianópolis, a 7 de abril de 1938, teve uma formação musical desde a infância. Sua [irmã] cantava e tocava [músicas] clássicas e [espirituais] e seu irmão era
pianista. Assim Freddie começou a se interessar cedo pela música e estudar mais seriamente quando fazia o curso médio. Após um início amadorístico teve chance de conhecer Sonny Rollins com quem trabalhou quatro meses em 1960, período em que travou amizade com outros músicos como Slide Hampton, JJ. Johnson e Quincy Jones. Passou depois para o grupo Art Blackey's Jazz Messengers em 1961. Posteriormente trabalhou um ano no grupo do baterista Max Roach e, depois, viajou [à] Europa e ao Japão. Na Áustria, em 1965, ainda foi destaque no Festival de Jazz de Berlim. Junto com o grupo de Quincy Jones gravou em 1965 a notável trilha sonora de "O Homem do Prego" (The Pawnbroker, de Sidney Lumet). Apesar desta carreira rápida e brilhante - em 1961 era escolhido o trumbetista revelação na votação de "Down Beat" - Freddie Hubbard permanecia desconhecido, como solista, em termos de Brasil até que a Top Tape, em princípios de 1973, aqui editou o seu vigoroso "Straight Life" (OW 523), logo seguido de "Red Clay" (PW 563). Tecnicamente comparado a Dizzy Gillespie e Fats Navarro (1923-1950), dono de um sopro original, sabendo desenvolver com clareza idéias aparentemente difíceis, Hubbard agradou aos brasileiros, de tal forma que em poucos meses, Rosemblite Sobrinho programou a edição de mais três discos em que é o solista central: "First Light"(OW 532), "Keep Your Soul Together"(OW 583) e "Sky Dive" (OW 559). Basicamente com um mesmo grupo instrumental - por exemplo o contrabaixista Ron Carter está em todos seus discos, Hubbard oferece uma sólida demonstração de suas potencialidades, com repertórios dos melhores permitindo - como aliás ocorre em todas as gravações produzidas por Creed Taylor - também um merecido destaque dos outros instrumentistas. Em "First Flight", onde é maior o número de instrumentistas - Airto Moreira na percussão, George Benson na guitarra, Hubert Laws na flauta, entre os mais conhecidos, temos após o tema-título, do próprio pistonista, "Uncle Albert/Admiral Halsey" de Paul & Linda McCartney, o suave "Moment To Moment" de Henry Mancini/Johnny Mercer. "Yesterday's Dreams" (Don Sebesky/Norman Martin) e "Lonely Town" de Leonard Berstein/Comden & Green. "Keep Your Soul Together" traz uma base de instrumentistas menor: George Cables ao piano, Carter e Kent Brinkley no baixo, Ralph Penland na bateria, Aurell Ray na guitarra, Junior Cook no sax tenor e um certo Juno Lewis em não-identificado instrumento chamado "Dahka-Doom/Dahka-De-Bello". Desta vez Freddie Hubbard apresenta apenas músicas próprias: "Brigite", "Keep Your Soul Together", "Spirits Of Trane" e "Desteny's Children". Finalmente "Sky Dive" equilibra o repertório: duas faixas de Hubbard - "Povo" e "Sky Dive", um clássico do jazz tradicional - "In A Mist" de Bix Beiderbecke (1903-1931) e o conhecidíssimo tema de "The Godfather" do italiano Nino Rota. Mas o talento de Hubbard é [tão] grande que consegue dar ao desgastado (pelo sucesso) tema cinematográfico uma nova e extraordinária dimensão, no que conta muito o excelente e fiel grupo de músicos que o acompanha [como] o baixista Ron Carter, o guitarrista George Benson, os percussionistas Ray Barreto e Airto, além de três trombonistas, uma tuba, três flautistas e um oboé. São poucos os jovens músicos de jazz que merecem a edição de 5 [álbuns] no Brasil em menos de um ano. E ao dar este prestigiamento a Hubbard, a Top Tape não deve estar dando um salto no escuro: o público {ligado} já deve ter descoberto a importância deste instrumentista. Merecidamente!
RON CARTER - Participando tão fielmente de todas as gravações de seus amigos - Hubbard, Laws, Farrel, Airto e outros da CTI Records, era justo que o contrabaixista Ron Carter também se destacasse em lps como solistas. E assim temos "All Blues" (OW 592), segundo lp de destaque de Carter que a Top Tape coloca no mercado brasileiro e onde Ronald Levin Carter, nascido em Ferndale, Michigan, a 4 de maio de 1937, demonstra possuir qualidades que o credenciam a substituir o mago Charles Mingus - hoje o mais perfeito contrabaixista de jazz. Aluno de música no Detroit Cass Tech HS e na Eastman School of Music em Rochester, Nova Iorque, Ron Carter graduou-se posteriormente pela Manhattan School of Music em 1961, sendo assim um instrumentista de [sólida] base - executando além de contrabaixo e cello, também violino, clarinete, trombone e tuba. Seu primeiro emprego foi na Orquestra Filarmônica de Eartman regida por Howard Hanson. Com Chico Hamilton foi despertado para o jazz passando então a atuar com diferentes grupos, sempre na condição de free-lancer: Eric Dolphy, J. Adderley, Jaki Byard, R. Weston e B. Timmons. Em 1965 [trabalhou] com Friedich Gulda na Europa e naquele mesmo ano era escolhido "New Star Award for bass" pela revista "Down Beat". Descrito pelos críticos como um artista brilhante por seu ritmo e sua técnica, Ron Carter trouxe para o moderno jazz uma sólida base de formação clássica, o que lhe permite a execução não só do contrabaixo mas uma integração a outros instrumentos. Falando a seu respeito, o crítico Pete Welding disse: "Carter consegue fazer dueto consigo mesmo... ele tem um completo comando de seu instrumento". Uma das mais positivas influências sobre os contrabaixistas da geração dos anos 60, Carter tem participado de muitas gravações e fez na Prestige, em 1963, o seu primeiro lp ("Where"). Com Miles Davis gravou "Seven Steps to Haven", "In Europe", "My Funny Valentine" e "E.S.P." (todos na Columbia). Com Eric Dolphy fez "Out There" e "Far Cry". Neste "All Blues", Carter convocou um grupo de instrumentistas ainda pouco conhecidos: os pianistas Roland Hanna e Richard Dee (piano elétrico), Billy Cobham na bateria e percussão e Joe Henderson no sax-tenor. A admiração de Ron Carter por Miles Davis está explícita na escolha do tema-título do [álbum] de autoria do grande Davis. Quatro composições próprias mostram também o seu talento de criador: "A Felling", "Light Blue", "117 Special" e "Fufus", ["]Will You Still Be Mine" de Matt Dennis/Tom Adair/Paul Weirick comopleta este importante lp.
NOTA
(1) Buffy Sainte-Marie é uma das mais importantes compositoras-intérpretes norte-americanas, numa linha de folk/protests songs semelhante a Joan Baez, mas que permanece praticamente desconhecida no Brasil. Há 2 anos a Copacabana editou um de seus discos, mas foi um fracasso de vendas e o álbum já saiu de catálogo. No corajoso filme "Quando é Preciso Ser [Homem]" (Soldier Blue, 1970, de Ralph Nelson) e Buffy Sainte-Marie que canta a balada-título da fita.
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