Login do usuário

Aramis

Parada obrigatória para pensar

"Começaria tudo outra vez Se preciso fosse, meu amor A chama em meu peito ainda queima, Saiba, nada foi em vão!" (1975) Parada Número Um - Sábado, 20 de abril de 1991, 12 horas. Em meu escritório, ao qual afetivamente chamo de "Estúdio Vinícius de Moraes", na Rua , 24 de Maio, trabalho em alguns textos, quando sou surpreendido com a chegada de um dos melhores amigos, o incansável animador cultural, radialista e compositor Cláudio Ribeiro. Cumprimentando-me, vai dizendo: - "Trouxe uma visita de surpresa. Que você vai gostar...". Levanto da mesa e abraço um amigo que não via há alguns meses, desde a penúltima festa de entrega dos prêmios Sharp: Gonzaguinha. Sorridente, a mesma expressão alegre e cordial, apresenta-me um amigo, o advogado Renato Manoel Costa, que vem cuidando de sua vida profissional-artística. O papo é como tivesse sido apenas interrompido: falamos de amigos comuns, de música e Gonzaguinha, com entusiasmo, explica os projetos para o seu grande sonho: consolidar em Exu, terra natal de seu pai, o Parque Asa Branca e o Museu do Gonzagão. Gonzaguinha fala também de sua emoção na atual temporada, iniciada em Petrópolis, em março, no qual em solo, e com o apropriado título de "Cavaleiro Solitário", traz novas e antigas canções, percorrendo o Brasil afora. Depois de Curitiba, apresentações em Cascavel, Francisco Beltrão, Apucarana, Toledo e Pato Branco no Paraná - seguindo depois para Santa Catarina. - "Em julho, antes de viajar para Portugal, Itália, França e Alemanha, faço um novo disco. E isto depois de percorrer também o Nordeste". Parada Número Dois - No acolhedor restaurante Dimassa, almoçamos uma feijoada "light". Ali, entre conversas políticas - com Cláudio Ribeiro, falando do seu amigo Roberto Freire e dos novos caminhos do comunismo verde-amarelo, Gonzaguinha comenta o momento brasileiro e especialmente, a necessidade de se refletir em termos de novas realidades. Sempre lúcido e objetivo, tal como na sua obra que há 21 anos faz o Brasil pensar e sentir, Gonzaguinha também mostra um lado de grande sensibilidade: fala de velhos amigos, da necessidade de reencontrar aqueles que não vê há tempos, e buscar o diálogo e, por várias vezes, explica o seu show: "O nome é quase uma referência ao "Cavaleiro da Esperança", brinca. Diz ainda que o mesmo representa o "reinicio". Discordo, pois ele nunca parou e mesmo afastado, talvez, dos discos de ouro, sua obra sempre foi regular, coerente e belíssima. Lembro seu início de carreira, com "O Trem" - vencedor do segundo Festival Universitário de Música Popular, promovido pela TV Tupi em 1968, aquele ano que não acabou (como disse Zuenir Ventura). Gonzaguinha recorda-se de outra música desta primeira fase, "Parada Obrigatória para Pensar", que concorreu no festival seguinte e o título faz com que eu, Cláudio e Renato, concordássemos em uníssono: - "Eis aí, um título mais atual do que nunca - para um novo disco e para um show". Gonzaguinha concorda. Afinal, nunca é demais fazer uma parada obrigatória para pensar. Parada Número Três - Teatro Paiol, 21h20 de 20 de abril sábado. Sentado ao lado do compositor Roberto Nascimento - velho amigo de Gonzaguinha e de Cláudio Ribeiro e sua esposa, Gracinha, ouço em estado de emoção Gonzaguinha mostrar suas nova músicas - são oito - preparadas para o próximo elepê. Penso na grandeza de um compositor iluminado que sem jamais deixar o pensamento político, a coragem de denunciar, de dizer não - como seus amigos Chico e Ivan Lins, dos mais censurados e perseguidos pela ditadura militar - conservando a emoção, o romantismo, sem jamais perder a ternura, como já ensinava o sempre presente "Chê" Guevara. A emoção de ouvir/ver Gonzaguinha, no palco do Paiol, com uma precisa iluminação, tirando os acordes certos do violão que o acompanha há 20 anos, é interrompida, quando fico sabendo que o cinegrafista Rafael Brenner Silva, que havia sido convidado e autorizado por Gonzaguinha para documentar o seu show, para o acervo da Associação dos Pesquisadores da Música Popular Brasileira, tinha sido impedido de entrar no Paiol e, em conseqüência, acabou sendo assaltado nas imediações do teatro. O resto do show eu apenas escuto: na sala da administração, ao telefone, tentando tomar providências junto a Polícia para registrar o assalto à mão armada, só venho reencontrar Gonzaguinha horas depois. Recebe-me com solidariedade e um abraço fraterno: - "Já soube da violência sofrida. Lamento porque desejava ter uma cópia deste show que estou praticamente estreando e sei que ele seria preservado no acervo da Associação dos Pesquisadores da Música Popular Brasileira". O advogado Renato Costa, acrescenta: - "Foi uma arbitrariedade, pois eu havia informado pessoalmente a diretora que o show estava autorizado para ser gravado". Parada Número Quatro - Manhã de segunda-feira, 21 de abril, 11h30, gabinete do governador - Levado por seu amigo Cláudio Ribeiro, Gonzaguinha é recebido informalmente por Roberto Requião, que sempre o admirou como artista e líder de sua categoria, um dos fundadores da Sombrás - movimento criado há 15 anos para defender os direitos autorais e combater a corrupção nas sociedades arrecadadoras. Gonzaguinha também respeita Requião, acompanhando sua trajetória política independente e corajosa. Uma conversa amiga, recheada de estórias ligadas ao velho Gonzagão - lembrado inclusive por outros participantes da reunião, entre os quais os deputados Caito Quintana e Severino Felix, que, quando prefeito de Assaí, recebeu a visita do velho "Lua". Gonzaguinha expõe a Requião o seu projeto de fazer de 13 de dezembro - data de aniversário de Luiz Gonzaga, o Dia do Sanfoneiro. Fala da grande festa que reuniu os maiores sanfoneiros do Nordeste do Brasil em Exu, no sertão pernambucano, no ano passado e de sua idéia de fazer este evento acontecer em outros Estados. No Paraná, onde a presença dos imigrantes nordestinos foi significativa, seria válido tal efeméride acontecer. Requião gosta da idéia e confia a Cláudio a missão de produzir a festa. Momento Obrigatório para Pensar Número Cinco (Flash-back) - 24 de maio de 1977, em minha residência, numa noite de música, depoimentos e amizade, recebo Gonzaguinha. Ali presentes, entre outros, Antônio Adolfo, tecladista hoje morando em Los Angeles; jornalistas Luís Augusto Xavier, colega de "O Estado" e o letrista Heitor Valente. Era a época da Sombrás e a repressão política da ditadura militar que censurava o trabalho de compositores do pensamento como Gonzaguinha. Na capa de "Moleque Gonzaguinha" (EMI/Odeon, 1976), ele deixaria um autógrafo do qual muito me orgulho e que, sem falsa modéstia, transcrevo neste momento em que, coração sangrando ao saber de sua trágica morte, alinhavo estas palavras. "Nos vimos há muito tempo atrás mas a impressão já foi ótima e, através de outros canais (jornais, Sombrás) minha admiração pelo que você representa como força de trabalho só fez aumentar. Nos veremos breve. Conversaremos calmamente. Um abraço de um admirador seu, Gonzaguinha - 24/05/77". xxx Agora, Gonzaguinha é mais uma estrela que ilumina o céu musical - deixando mais escuras as coisas aqui na Terra. Como o grande Chico Viola e as inesquecíveis Maysa e Silvinha Telles, na estrada, a bruxa maldita chamada morte o levou cedo demais - ele que era ternura e pensamento. Choramos todos nesta hora de dor e ausência.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
16
30/04/1991

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br