Pobreza em technicolor
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 27 de setembro de 1978
No epílogo de "O Cortiço" (Cine Condor, 5 sessões), uma personagem que se torna débil menta, após sua filha ter se tornado lésbica, ao ver a alegria pela proclamação da República e indagar o que é a República e ser informada de que ela significa melhores dias, vira-se para a câmara e diz, repetindo uma frase que se tem ouvido muito ultimamente: "O futuro a Deus Pertence". A câmara sobe e a última [seqüência] focaliza os moradores do cortiço numa artificial explosão de alegria.
Esta irônica [seqüência], junto com a música - tema ("Rita Baiana", João Neschling/Geraldo Carneiro) na voz de Zezé Motta, são os pontos mais interessantes deste terceiro longa-metragem de Francisco Ramalho Júnior, 37 anos, cineasta paulista que acreditamos como um dos mais talentosos homens do cinema nacional. Ramalho Júnior nos dizia, na semana passada, em São Paulo, às vésperas de embarcar para o Festival de San Sebastian, Espanha - onde "O Cortiço" representa o Brasil - que aceitou dirigir este filme, no segundo semestre do ano passado, exclusivamente por razões profissionais: estava sem dinheiro e a proposta dos produtores foi interessante. Mas, em absoluto, a transposição cinematográfica do romance que Aluísio (Tancredo Gonçalves) de Azevedo (São Luiz, 1857 - Buenos Aires, 1913) se afigurou como uma obra de realização pessoal. Bom profissional, Ramalho Júnior buscou realizar uma obra limpa, bem acabada - e se os resultados são frustrantes, não lhe cabe exclusivamente a culpa. Afinal, se trata de um filme feito em bases empresariais, com um elenco imposto ("não pude escolher nem o 33º nome", queixa-se o diretor), buscando principalmente capitalizar o sucesso que a dupla Betty Faria/Mário Gomes fazia na época, na telenovela "Pecado Capital" (Rede Globo de Televisão).
POBREZA EM TECHNICOLOR - Escrito em 1890, "O Cortiço" é citado como representativo do naturalismo na literatura brasileira. Documento social de uma época, a obra do maranhense Aluísio de Azevedo oferece personagens fortes e dramáticos - estabelecendo os contrastes da burguesia em busca do status nobiliárquico (a família do comerciante Pereira) em contraste com a miséria da estalagem de João Romão, imigrante português que faz fortuna explorando os próximos. Infelizmente, essa visão social não passa na ótica de Ramalho Júnior, que pintou "O Cortiço" com o colorido hollywoodiano, com trajes, cenários e mesmo fartas mesas de comida com o tecnicolor digno dos mercados persas das produções americanas dos anos 40. Nisto, acreditamos, houve imposição dos produtores, desinteressados em carregar nas tinas sociais e buscando apenas o exótico e o sensual - embora a Censura cortasse a [seqüência] mais provocativa (em que Silvia Salgado é seduzida por uma lésbica) com vistas à bilheteria. O filme é dedicado a Lulu de Barros (Luiz Guilherme Texeira de Barros, 85 anos), pioneiro do cinema brasileiro que em 1945/46 fez a primeira versão deste romance, produção de Ademar Gonzaga, na Cinedia, no elenco liderado por Cole Santana e Perola Negra.
Não podendo ser social ou documental, "O Cortiço" é cínico em suas colocações: os maus são vitoriosos e os bons castigados. O português João Romão (Armando Bogus), capaz de todos os mau-caratísmos imagináveis, acaba riquíssimo, casando com a filha do vizinho Barão e ainda sendo homenageado pela associação dos abolicionistas, após denunciar e provocar a morte da velha escrava com a qual vivia.
Capaz de realizar filmes magníficos, como "Anuska, Manequim e Mulher" (1969, do conto de Ignácio de Loyola) e, principalmente, "A Flor da Pele" (1976, de Leilah Assunção), Ramalho Júnior é um cineasta que merece nossa admiração. Só que no caso de "O Cortiço", possivelmente desesperado pelas possibilidades de desenvolver um trabalho pessoal e criativo, liberto das imposições comerciais, preferiu partir para o humor e mesmo cinismo. Agora é aguardar o seu próximo filme, já em fase de planejamento, onde terá completo domínio de realização, a partir do argumento, de sua autoria.
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