Um documentário corajoso sobre o Chile torturado
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 24 de novembro de 1986
Rio de Janeiro
Se dentro da programação competitiva do FestRio ainda não apareceram os filmes de impacto social e político - a exemplo da primeira edição, há 3 anos, quando "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho, foi o grande premiado - ao menos no setor de vídeo, a abertura não poderia ser mais política. O cineasta Miguel Littin, que, aqui presente no ano passado, anunciava ter retornado ao Chile - de onde está exilado há 13 anos - e filmado um corajoso documentário, de forma clandestina, cumpriu a promessa feita então: trouxe este trabalho impressionante. Produzido pela TV espanhola, dividido em duas partes (duas horas cada), "Acta General de Chile" lotou as sessões em que foi apresentado no 2º andar do centro de convenções do Hotel Nacional, onde se realiza o FestRio. No ano passado, a mostra de vídeo, organizada por Hamilton Costa Pinto (hoje o maior "expert" nesta área no Brasil), já havia conseguido dosar uma seleção de temas em vídeos de várias procedências. E dos vídeos de denúncia política apresentados em 1985, o mais contundente foi um trabalho jornalístico, independente, sobre a tortura e assassinato de Stuart Angel e sua companheira (ele filho da figurinista Zuzu Angel, também assassinada pela repressão - tema que o jornalista e TV-man Walter Salles Jr. promete para sua estréia num longa-metragem planejado há dois anos, com Fernanda Montenegro). Na ocasião, a projeção daquele vídeo emocionou o público, incluindo familiares das famílias das vítimas da repressão, presentes na sessão.
Na noite de sexta-feira, com poucos chilenos entre o público - entre os quais o cineasta Jorge Duran (diretor do premiado "A Cor de Seu Destino" que também aborda a ditadura do Chile e representará possivelmente o Brasil no Festival de Berlim), "Acta General de Chile" arrancou aplausos do público.
Uma prova de coragem do cineasta Littin, que, constava da lista dos 5 mil exilados absolutamente proibidos de voltar ao seu país. "Acta General" foi realizado através de uma habilidosa operação legalmente admitidas no País - mas trabalhando, clandestinamente, com seis equipes de jovens da resistência interna. O Littin, disfarçado, permaneceu seis semanas no Chile, filmando inclusive dentro do Palácio La Moneda, chegando a estar próximo ao ditador Augusto Pinochet Ugarte.
Com muitos depoimentos de políticos, autoridades e gente do povo, "Acta General de Chile" traça um amplo painel do Chile inclusive de seu lado histórico, mostrando a presença do colonialismo inglês no século passado, na exploração das minas de salitre, substituídos, depois, pela força americana. A primeira parte do documentário se fixa em Santiago, enquanto que a situação dos mineiros, a tradição de luta operária e os interesses que se voltam aos recursos naturais do Chile ocupam a segunda hora - na edição de "Actas" exibida na mostra. Littin, 44 anos, já havia realizado um contundente filme sobre um massacre de mineiros em greve, ocorrido no início do século, - "Actas de Marusia", com o ator italiano, Gean Maria Volonte (deputado pelo PC na Itália), e que, há 3 anos, foi exibido em Curitiba, no Cine Groff. O mesmo episódio inspirou uma das mais bonitas obras musicais latino-americanas - a cantata de Iquique, existente em discos no mercado latino-americano. Aliás, na trilha de "Acta General de Chile" há a participação destacada da mais conhecida família musical do País, os Parra. Angel coordenou a trilha sonora, incluindo muitas músicas de sua famosa (e trágica) mãe, Violeta, a conhecida autora de "Gracias a La Vida", que se suicidou há 15 anos, devido a frustrações de amor.
"Acta General de Chile" é daqueles momentos do melhor jornalismo político, denunciando fatos que ocorrem atualmente no Chile - vítima da sanguinária ditadura de Pinochet - e que mostram o vigor e a importância do cinema, como alerta. Lamentável apenas que trabalhos como este (e, no caso, o vídeo sobre a morte de Stuart Angel, do ano passado), não cheguem a ter uma veiculação nacional. Como seria importante a exibição de um documentário deste nível de atualização e coragem por uma rede nacional de televisão, informando o público sobre o terror e misérias que a ditadura militar trouxe ao Chile a partir de setembro de 1973, quando do golpe que vitimou o presidente Salvador Allende no Palácio La Moneda, em Santiago.
A experiência de Frederico
Entre os espectadores mais atentos de "Acta General de Chile" estava o cineasta Frederico Fullgraf, de raízes curitibanas - onde passou sua infância e na qual residia até há dois anos passados. Frederico tem razões para se entusiasmar com o trabalho de Littin: há 11 anos quando ele morava em Berlim Ocidental, trabalhando para a televisão, foi convidado pelo fotógrafo e produtor Peter Hellning, para integrar uma equipe que faria um filme denunciando as violências do governo Pinochet contra os direitos humanos. Peter, dois anos antes, havia estado no Chile, com os realizadores Heynowsky e Scheumann, da República Democrática da Alemanha, ali fazendo um vigoroso filme sobre os campos de concentração para os presos instalados nas antigas minas de salitre no Norte do País. Realizado de forma irregular - foi utilizado um descuido de um coronel que não apercebeu-se das filmagens - a equipe de Heynowsky e Scheumann, do trabalho original, não pode voltar mais ao país. Frederico Fullgraf, então, comandou um cinegrafista inglês e um técnico de som alemão, para, com muitas dificuldades - e mesmo risco de vida - prosseguir o trabalho. Conseguiram ótimo material que seria montado já sem a participação de Fullgraf (num média-metragem chamado "Faz escuro mas eu vejo", título que lembra o poema de Thiago de Mello, por sinal exilado no Chile até 1973) e que obteve o prêmio no festival de Mannheim. Os produtores Heynowsky e Scheumann, os mais ativos documentaristas de temas políticos da Alemanha Oriental, têm dezenas de filmes corajosos - do Vietnã, África, América Latina etc. - exibidos recentemente em Curitiba, na Cinemateca. Agora, numa das mostras paralelas do FestRio, realiza-se também a mesma retrospectiva (estação Botafogo, 27 a 30 de novembro), dando assim uma complementação informativa à diversificada programação deste FestRio.
Circo eletrônico
Apelidado de "Circo Eletrônico", a mostra de televisão e vídeo, distribuída em três salas que funcionam a partir das 18 horas, trazem dezenas de produções das mais interessantes, tanto do Brasil como do Exterior. De diversas metragens e as mais diferentes tendências e temas - do experimental à ficção - os vídeos mostram como está a criatividade através deste novo meio de produção de imagens em todo o mundo. Hamilton Costa Pinto, organizador do evento, procurou trazer exemplos dos melhores trabalhos apresentados em festivais internacionais - como o "Cataluña", que reflete uma visão contemporânea dessa região espanhola - a mostra Montbeliard, dividida em três partes e reunindo cerca de 25 vídeos apresentados naquela cidade francesa. Outra seção especial é a mostra de vídeos independentes da América Latina. A maioria dos trabalhos são documentários. Já "La Villette" reúne 15 vídeos realizados na "cidade" dienvia e da Indústria Francesa, Villette, que abordam conceitos científicos, sociais e econômicos. Enfim, há uma forte presença do vídeo - tanto na parte informativa, como no mercado, com pelo menos uma dúzia de estandes de empresas - desde a Globotec, Manchete e UIP, poderosas em seus lançamentos - até as pequenas que estão oferecendo seus novos lançamentos. E as vendas são impressionantes, pois o vídeo cresceu em mais de 500% nos últimos meses - mas isto é assunto para uma outra correspondência.
LEGENDA FOTO - Pinochet: retrato da ditadura.
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