Um feliz início de festival com belo filme sobre jovens
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 22 de junho de 1988
Gramado - Paralelamente à presença maciça de mulheres como realizadoras nos 32 filmes concorrentes (nas diferentes bitolas) duas delas, Norma Bengel ("Eternamente Pagu") e Teresa Trautman ("Sonhos de Menina Moça"), em longas-metragens, um aspecto marca esta 16a. edição do mais importante festival do cinema brasileiro: dois filmes realizados por jovens estreantes, com roteiros adaptados de best-sellers a autores igualmente jovens e que tratam de problemas contemporâneos, com extrema dignidade e sinceridade: "Feliz Ano Velho", de Roberto Gervitz - que abriu o festival, no domingo, e "Dedé Mamata", de Rodolfo Brandão (hoje). Se não os melhores, ao menos duas obras pulsantes de energia, extremamente bem acabadas e que voltam-se para os problemas dos adolescentes e jovens, vistos com uma ótica de sinceridade, sem o imbecilizante tripé rock-transa-amor, que, infelizmente, vem marcando as (frustradas) tentativas do cinema brasileiro em (re)conquistar as platéias jovens na linha de filmes leves como "Menino do Rio", "Rádio Pirata", "Beth Balanço", "Rock Estrela", etc.
Marcelo vai à luta
Marcelo Rubens Paiva, 29 anos - que chegou segunda-feira em Gramado - era um jovem vigoroso inquieto e com as angústias de uma geração criada na repressão dos anos 70 - agravada pelo fato de ter perdido o pai, o deputado nacionalista Rubens Paiva (1922-1971), assassinado pelos órgãos da repressão - "desaparecido" pelo qual nunca as autoridades assumiram o seqüestro e morte. Estudante da Unicamp, em Campinas, sofreu um acidente terrível: ao mergulhar num lago bateu numa pedra, quebrou a coluna e se tornou paraplégico. Aos 20 anos, imobilizado, vendo desaparecer os sonhos de uma vida normal, Marcelo escreveu um livro que se tornaria, a partir de sua primeira edição, há 7 anos, um dos maiores best-sellers do Brasil: "Feliz ano Velho" (Brasiliense, já em 75a. edição). Dois anos depois, Paulo Betti adaptou e dirigiu o texto para o teatro, repetindo o sucesso em temporadas em várias capitais (inclusive em Curitiba, por duas vezes), emocionando o público. A peça centrava a ação no lado político, do seqüestro de desaparecimento de Rubens Paiva (interpretado por Adilson de Barros) e da luta da viúva Eunice (Denise Del Vecchio), em interpretações que valeram premiações.
Roberto Gervitz, 30 anos, descendente de judeus-russos, com família materna que reside em Curitiba (cidade em que passou muitas férias), havia sido colega de Marcelo Paiva, quando ainda adolescente, no Colégio Santa Cruz, no qual foi fundador do cineclube e começou a realizar em super-8mm. Embora sem se tornarem amigos íntimos, a tragédia que atingiu Marcelo o abalou e, tão logo leu a primeira edição do livro, viu uma grande força dramática. Gostou também da peça mas começou a trabalhar após ter obtido do autor os direitos para o cinema - num roteiro em que a proposta não "seria fazer um filme de moda ou uma adaptação servil". Ao contrário, procurou colocar "de forma muito intensa minha experiência para o filme ter vida própria". Os nomes dos personagens foram mudados, outros criados - como o paraplégico pintor Beto (Marco Nanini, excelente), o tetraplégico Edu (Augusto Pompeo) e sua dramática amante, a bailarina Angela (Malu Mader), fazendo uma "adaptação livre" do livro que, nesta década, tanta empatia encontrou no público jovem - e que, por seu sentido de esperança e otimismo, tantos benefícios tem trazido a milhões de deficientes físicos.
O resultado de uma fusão de talentos e idéias renovadoras resultou num filme que, a partir da primeira seqüência - Mário (Marcos Breda), ator gaúcho, visto em "Mandala" imobilizado no hospital, em contradição às imagens da corrida de São Silvestre - até o momento final, é emoção, provoca reflexões e não deixa o espectador indiferente. A platéia do Cine Embaixador, aqui em Gramado, na noite de domingo, viu o filme no mais absoluto silêncio e não foram poucos os que, depois, na festa de abertura do festival, cumprimentavam Gervitz, as atrizes Malu Mader (que faz o duplo papel de Ana, sua namorada e da bailarina Angela) e Betty Fogman (Soninha), Odilon Bastos (Carlos, o pai) e Eva Wilma (Lúcia, a mãe), aqui presentes (Marcos Breda, não pode pois, no Rio atua na peça "O Amigo da Onça").
Há momentos que "Feliz Ano Velho" lembra em seu "timing" dramático, o clássico "Johnny Vai à Guerra" (de Dalton Trumbo), o dilacerante drama de um soldado americano que, numa explosão na I Guerra Mundial, perde os membros superiores e inferiores e os 5 sentidos, mas se conserva lúcido e vivo, tentando a comunicação com as pessoas - do isolamento em sua cama no hospital. O drama de Marcelo Paiva, real, não chegou a tanto, mas o roteiro adulto e inteligente de Gervitz procurou (e conseguiu ) fazer passar não apenas o "drama de um tetraplégico", fazer um filme piegas (e de fácil apelo lacrimogênico) ou caminhar pelo lado político (as referências do desaparecimento e morte do seu pai, pelos órgãos de repressão, são breves). Ao contrário, o filme penetra num clima do jovem angustiado, de suas dúvidas e seus medos ("quis mostrar um Marcelo conflituado antes mesmo do acidente", nos dizia, ontem à noite Gervitz), dando assim uma dimensão ao filme capaz de fazê-lo ser compreendido e obter uma empatia com platéias internacionais. Tecnicamente, uma produção com a qualidade que caracteriza todas as realizações da Tatu Filmes, dirigida por Cláudio Kahns, 36 anos, 18 de cinema (produtor, entre outros, de "Janete", "Vera" e "A Marvada Carne", mais de um milhão de espectadores, 14 prêmios em Gramado-85, presença em mais de 20 festivais do mundo, inclusive Cannes). Gervitz, que chega ao longa-metragem após passagens por várias funções (montador, técnico de som direto, criador de trilhas sonoras, diretor de dublagem, colaborador de roteiros e pesquisas), tal como seu grande amigo, Sérgio Toledo (Segall), havia feito em "Vera" (1986, várias premiações nacionais e internacionais, sucesso de público e, inclusive, o prêmio de melhor atriz a Ana Beatriz em Berlim), trabalhou com requinte, de um roteiro seguro e com uma equipe técnica que possibilitou uma fotografia belíssima (Cesar Charlone), com nuances de cores que identificam os vários climas psicológicos, a coreografia esmerada de J.C. Viola e, especialmente, uma trilha sonora de um novo compositor surpreendente, Luiz Henrique Xavier, empregando com emoção solos jazzísticos de metais nas seqüências finais.
A aproximação do mais fino acabamento, lembrando "Vera", não é gratuita: Gervitz dirigiu com Sérgio o documentário "Braços Cruzados, Máquinas Paradas", sobre greves no ABC há 10 anos passados, premiado em Leipzig e representante do Brasil no Festival de Berlim.
LEGENDA FOTO: Cena de "Feliz ano velho", de Roberto Gervitz.
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