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Aramis

Um Romance sem complacência no filme-Verdade de Serjão

Serjão não perdoa: Filma! Não há complacência: o inferno espera a todos. Os fotogramas são balas full metal jacket: o suicídio é mais do que a única questão (seria?) que tanto angustiava (Albert) Camus (e seus discípulos). A impotência frente ao inexorável, o desencanto, o vazio - quase um nihilismo propositadamente assumido, em que a concessão a canalhice do sistema é tão mortal quanto ao suicídio real ou a passagem da morte num ritual homossexual. "Romance" é irônico, cruel - mas verdadeiro e sincero, a partir do próprio título. Os personagens que há sete anos habitavam o casarão em ruínas, simbólica metáfora de "Maldita Coincidência" saíram agora mas não encontram o Sol - apesar de muitas seqüências plasticamente bem emolduradas, quase cartões postais frente as imagens normalmente soturnas e trágicas de uma filmografia que se volta para dentro como faz Sérgio Bianchi, 42 anos, paranaense de Ponta Grossa - e que com este "Romance" (cine Ritz 5 sessões) se firma como um dos mais fortes cineastas de invenção do Brasil. Quem conhece Serjão - ou melhor, já viu (e entendeu) sua pequena (grande) obra, constituída de cinco curtas (e um sexto, que deliberadamente proibiu de ser exibido, "Entôjo", 85) e o longa "Maldita Coincidência" poderá sentir melhor toda a força de "Romance", produção bem acabada e que apesar de quatro (longas) interrupções de filmagens conseguiu um resultado técnico competente. Entretanto, cinema não é para ser feito em relação ao que o seu realizador pretenderia, mas sim o que passa, o que resulta. E nisto, "Romance" é um filme que comporta inúmeras definições e explicações - embora seja tal como aquela campanha canalha que a Ditadura promoveu há alguns anos: "Brasil, ame-o ou deixe-o". "Romance" é isto: ame-o (entenda-o) ou saia do caminho (ou melhor da sala de exibição). Não há meio termo racional. É pegar ou largar! Se tivesse pretensões falsamente intelectualóides - mal que, felizmente não sofre - Serjão poderia teorizar de influências e estilos, citando até o alemão Werner Rainer Fassbinder (1946-1982), que conheceu no festival de Cannes, há 12 anos e de quem se tornou amigo. Afinal, Bianchi tem muito que o aproxima da linguagem francamente debochada, satiricamente cruel e politicamente lúcida que caracterizava a voltagem do diretor de "Querelle". Quem quiser ver o lado da denúncia política, pode até aproximá-lo como um filhote de Costa Gravas com recursos tupiniquins no momento em que o roteiro deste "Romance" esculhamba com todas as letras a canalhice do poder, em especial de um deputado-imagem de tantos canalhas-mór que infestam nossas Câmaras, Assembléias e, especialmente Brasília. Bianchi, entretanto, abomina títulos e adjetivações. Sua formação foi feita na porrada, nenhum dos três cursos superiores que iniciou nos anos 60 concluídos (Economia, Ciências Sociais e História Natural), quando, vindo de Ponta Grossa, residia num quarto de pensão sing-sing na Carlos de Carvalho. Em São Paulo há 20 anos (em 1968, comandou manifestações políticas de rua que o recomendaram a se afastar de Curitiba). Bianchi chegou a frequentar a ECA, mas ao invés de uma diplomação formal preferiu partir para um aprendizado prático, que resultaria dois curtas, ambos inspirados em um dos poucos autores que curte profundamente, o uruguaio Julio Cortazar (1914-1984): "Omnibus" (1972) e "A Segunda Besta" (1977). Depois de "Maldita coincidência", Bianchi voltaria seu olhar para questões sociais, mas sempre denunciadas de sua forma que se equilibra entre a crueldade anárquica e o humor corrosivo: a questão indígena ("Mato Eles", 1982) e a Previdência Social ("Divina Previdência", 83), ambos premiados em festivais de Brasília e Gramado. É necessário lembrar estes títulos em torno de Bianchi para (poder) entender melhor um filme como "Romance", que nas primeiras sessões para a crítica, já dividiu as apreciações: o que o viram como um sopro de renovação e os que encontram mil defeitos. Agora, em seu primeiro teste de público (ver texto nesta mesma página), "Romance" provoca os primeiros impactos. A narrativa tradicional - que inicia como um "Citizen Kane" ou "A Grande Ilusão" (All The King's Man, 49) extrapola: De princípio, como nos filmes de Welles ou Robert Rossen, a morte de uma figura pública - no caso o radical Antonio César (Rodrigo Santiago) começa a ser investigado por uma jovem (jornalista? Pesquisadora universitária? - o roteiro não se preocupa em esclarecer), e, pouco a pouco, vai se formando uma trama, com denúncias de agrotóxicos, especulação imobiliária na região de Guaraqueçaba, interesses multinacionais, centrados na figura repulsiva de um deputado (Sérgio Mamberti, excelente atuação), cuja identificação com muitos de nossos parlamentares (inclusive algumas raposas paranaenses) não é sem coincidência. Entretanto, a armação de "Romance" não fica no maniqueísmo do cinema-denúncia, do filme político ao estilo Costa Gravas: paralelamente, a ação envolveu personagens extremamente dramáticos, como as duas pessoas que dividiram sexualmente a vida de Antonio César: sua esposa, Fernanda (Isa Kopelmann) e seu último companheiro, André (Hugo Della Santa), homossexual, que sofre de Aids e, maldita coincidência, o ator interpretou, há poucas semanas, morreu vítima de Aids, em São Paulo. Regina (Imara Reis, desglamorizada, com uma tintura dramática extraordinária) é o ponto de equilíbrio aparente do filme, que conduz a investigação-narrativa, mas que, no final surpreende, também acaba tendo um final cafajeste em termos de conceito. Bianchi, implacável, não perdoa nada e a ninguém: cada um expia suas culpas, os motoristas de táxi transpõe a própria violência (coletiva) da população, a fantasia quebrando para o real (o próprio Bianchi, aparecendo numa seqüência, no qual um garçom é humilhado) uma sátira de um documentário, narrado de forma-canalha estilo "Brasil grande" que enriquecia picaretas tipo I. Rosemberg e Jean Manzon por décadas, é intercalado para mostrar a miséria, o êxodo rural, as favelas, a poluição. Para quem quer ver defeitos no filme de Bianchi - (e não faltarão este tipo de críticos, profissionais ou amadores, é claro) - a não-linearidade das seqüências, a assumida quebra na narrativa convencional são pratos cheios. Assim como as (cruéis) seqüências da solidão do personagem de André, masturbando-se em seu apartamento ou prostituindo-se na zona mais pesada de São Paulo, também chocam. Bianchi não contempla - e aqui a palavra vai em seu sentido mais amplo - mais do que o olho no visor da câmara, ele é muito do que coloca em suas imagens, e esta sinceridade é que faz "Romance" ter uma força, um vigor, representando um toque rebelde entre a produção certinha, bonita, feitinha para conquistar prêmios e, se possível, fazer uma boa carreira. Sem cair no hermetismo, mas, ao contrário, contando linearmente uma história, Sérgio Bianchi conseguiu fazer em "Romance" um cinema revigorado, oxigenado pela sinceridade e honestidade. LEGENDA FOTO - Sérgio Bianchi (segundo à esquerda) e equipe, durante as filmagens de "Romance" em Curitiba
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
20/04/1988

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