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Aramis

Uma jornada de imagens tão amargas quanto a realidade

Salvador - Visitando um bar do "Pelourinho", na parte mais antiga desta cidade, a cineasta e atriz Eliana Fonseca, 30 anos, realizadora de curtas como "Frankenstein Punk" e "A Revolta dos Carnudos" - este inédito e que teve uma única exibição, em copia de vídeo, paralela, durante a XVIII Jornada Internacional de Cinema da Bahia - encerrada na noite de ontem - animou-se com o ritmo e começou a dançar. Sentiu a aproximação de um jovem que, logo lhe surrupiava Cr$ 3 mil que tinha. Insistiu ainda em tentar enfiar a mão no outro bolso, quando Eliana, uma pessoa extraordinariamente bem humorada, disse: - "Mas o meu, não ficou satisfeito de já ter me levado o dinheiro que eu tinha?". Um crioulo capoeirista, que observava a cena, aproximou-se da premiada atriz de "Não Quero Falar sobre Isto Agora" (que lhe valeu o Kikito no último festival de Gramado), e para se tornar simpático, foi perguntando: - "Você não quer que eu "convença" ele a devolver o dobro do que ele roubou?". Eliana decidiu não levar adiante a questão e tudo terminou com chope. Mas a mesma sorte não teve um jornalista, que ao deixar o sexagenário Cine Tamoio, na Rua Ruy Barbosa - ao lado da histórica Praça Castro Alves, e dirigindo-se a pé, nos 120 metros que separava a sede cinematográfica da Jornada do Hotel Palace, o mais antigo da cidade - hoje em total decadência - antes de chegar à porta, foi roubado por três pivetes. Horas antes, Rudá Andrade, 50 anos, filho do poeta Oswald de Andrade, ex-diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo, e que em sua condição de batalhador pelo cinema brasileiro coordenou o Fórum Latino-Americano de Cinema e Vídeo, também foi vítima de um assalto. O jornalista assaltado defronte ao Hotel Palace, na Rua Chile, exaltado nos frevos de Caetano e Gil, havia deixado o cinema onde o filme projetado era justamente "A Guerra dos Meninos", no qual a carioca Sandra Werneck denuncia os grupos de extermínio de crianças marginais. Estes fatos ilustram a deterioração urbana da capital baiana - hoje, mais do que qualquer outra capital brasileira, num processo de violência que vem inclusive reduzindo os turistas estrangeiros. Nesta cidade das 360 igrejas, tanta musicalidade e tradição cultural, realizou-se até ontem um dos mais diversificados eventos informativos sobre a realidade contemporânea - que coloca nas telas, imagens que, de certa forma, se vê em todas as partes: infância abandonada, prostituição, poluição, etc. Reiniciada após dois anos de intervalo - a Jornada é aquilo que se pode comparar ao "Festival do Real" - semelhante ao realizado em Paris, voltado exclusivamente ao cinema documentário. Embora nos últimos anos aberto também a ficção (especialmente em curtas), a Jornada que Guido Araújo organiza é uma mostra do que acontece especialmente no terceiro mundo, abordando problemas sociais, manifestações artísticas, folclore, etc. A credibilidade deste evento nascido modestamente em 1971 - e que já então se destacava por sua independência e autonomia ideológica, fez com que a partir de sua terceira edição deixasse a modéstia do regionalismo nordestino e adquirisse há uma década a internacionalização, voltada especialmente para abrigar mostras da criação cinematográfica - e posteriormente também do vídeo - de realizadores comprometidos com a realidade de países latino-americanos e africanos. Mesmo durante 1989/90, quando foi obrigado a suspender a Jornada, Guido Araújo, 53 anos, um ex-assistente de Nelson Pereira dos Santos em "Rio, 40 Graus" (1954), e que residiu por 10 anos na Checoslováquia, ali estudando e fazendo cinema, não deixou de receber filmes e vídeos de realizadores de vários países, que, admirando a filosofia e coerência desta promoção fazem questão de prestigiá-la. Graças a um ex-diretor do Goethe Institut de Salvador - aqui, como em Curitiba, dos mais atuantes - Roland Schaeffer, atualmente em Munique, a Jornada conseguiu ter uma sobrevivência regular até 1989, independente dos humores ligados a outras instituições que, com maior ou menor empenho, se dispõe a financiar um festival sem badalações sociais, sem estrelas, sem mordomias, cruelmente boicotado pela imprensa - tanto local como nacional - mas que pela pujança de suas imagens, pela seriedade dos debates que ocorrem paralelamente - numa multiplicidade que, aliás, torna impossível acompanhá-la melhor. Este ano, felizmente, os srs. Francisco Pessoa, José Augusto Burity e Francisco Senna, presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fundação Cultural do Estado e pró-reitor de extensão da Universidade Federal, respectivamente, uniram-se a Guido e ao professor Walter Schorlies, diretor local do Goethe, para que o evento fosse realizado durante uma semana, com a exibição de mais de 150 filmes e vídeos, uma centena de participantes - quase todos vindos com esforços pessoais (são mínimos os convites oficiais) e, sobretudo, dando aqui uma amostragem do cinema e vídeo que faz pensar.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
27/09/1991

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