Afetividade (sem medo de ser feliz)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 27 de junho de 1990
Afetividade - Mais do que uma palavra, eis uma definição que se encaixa com perfeição para "Stanley e Iris" (Cine Condor, 5 sessões). É um filme, naturalmente - ficção, com ingredientes de uma história que poderia ser mais uma entre tantas que ao longo deste século têm sido contada em imagens.
Só que há um detalhe: na simplicidade há a universalidade e quando um criador da dimensão de Martin Ritt, que ao longo de 34 anos construiu uma filmografia extremamente competente e repleta de filmes em que as emoções humanas sempre vieram em primeiro lugar (ver texto nesta mesma página), esta produção que chega inesperadamente, mais uma vez condenada a poucas exibições por falta de espectadores, traduz sentimentos e emoções - com uma virtude que se torna rara em nossos dias: o astral positivo, a esperança, o happy end.
Numa sociedade cada vez mais competitiva, em que a violência invade os lares e ninguém mais sente-se seguro, os sentimentos deteriorando-se, a insegurança física e emocional por todos os lados - e que se reflete na empatia com que novas gerações absorvem produtos de extrema violência, não só exibidos no circuito mas cada vez mais procurados em vídeos nas locadoras - um filme que trate de gente simples, problemas comuns e - supremo atrevimento - tenha ainda um final feliz, como nos tempos dourados do cinema, pode fazer "Stanley e Iris" ser classificado de careta e convencional. Pois bem, nossos sentidos pêsames a quem pensar desta forma - e para quem as emoções desapareceram.
Stanley Cox (Robert de Niro) é um homem bom. Cresceu acompanhando seu pai, Leonides (Feodor Chaliapin), que por força de sua profissão ambulante, vivia de cidade em cidade - o que fez com que ele nunca pudesse frequentar escolas regularmente. Adulto, analfabeto, trabalha como cozinheiro numa indústria de doces, ganhando para manter precariamente o seu idoso pai. Entretanto, acaba perdendo o emprego ao ser revelado o "segredo" que tanto escondia: o fato de não saber ler e escrever. Despedido, tenta outros empregos mas não pode mais manter o seu pai, sendo obrigado a interná-lo num asilo - onde ele, por solidão, falece em poucas semanas. Paralelamente a este drama, Stanley conhece e envolve-se com uma jovem operária, Iris King (Jane Fonda), que também enfrenta problemas: viúva há 8 meses, sustenta aos dois filhos e ajuda a irmã e ao cunhado desempregados. Sente-se, sozinha, desamparada, carente de sexo e afeição.
Conhecem-se por acaso, quando, na primeira seqüência, um ladrão rouba a bolsa de Iris no ônibus. Novos encontros acontecem, já que ambos trabalhavam na mesma fábrica - até Stanley ser despedido pelo fato de, sendo analfabeto, colocar em risco a segurança, na alegação de seu chefe: "Você pode colocar inseticida como se fosse sal na comida".
A morte do pai leva Stanley a romper seu constrangimento e pedir a Iris que o ajude a aprender ler e escrever. Generosamente, mesmo com seus vários problemas, a ele se dedica e um relacionamento afetivo nasce. Lento, gradual, difícil de chegar ao sexo - com Iris ainda presa ao passado com seu falecido marido. Como numa fábula em que os bons são recompensados, Stanley tem seu valor recompensado: mesmo analfabeto, desenvolve na garagem em que vive uma máquina que lhe vale melhores oportunidades de trabalhos e o transforma num executivo em progresso, podendo, então, trazer a felicidade a Iris.
Em mãos menos competentes, seria apenas uma história. Mas o romance "Union Street" de Pai Barker, originalmente enfocando situações de vários trabalhadores na Inglaterra, ganhou a competência de dois dos mais competentes roteiristas americanos - Harrie Frank Jr., e Irvin Ravetch, que desde a adaptação que fizeram de "O Diário de Anne Frank" se firmaram como profissionais que conhecem o ofício. O roteiro é preciso, enxuto: em poucas seqüências há uma definição dos personagens, os diálogos são objetivos, as emoções fluem, Martin Ritt, com seu toque de mestre de sentimentos, sabe como emoldurar uma história. O que pode melhor simbolizar a simplicidade de operários: uma bicicleta, é claro! O italiano Vittorio De Sica no clássico "Ladrões de Bicicletas" (1948) ou o brasileiro Sérgio Ricardo em "Este mundo é meu" (1963), criaram cenas inesquecíveis a partir dos personagens pobres em relação a bicicleta. Stanley também tem uma bicicleta roubada mas adquire uma usada e nela conduz Iris. Uma seqüência belíssima daquelas que permanecem na memória do espectador. No asilo em que é obrigado a internar seu idoso pai, ele corta seus cabelos, acaricia-os - numa seqüência de imensa ternura - sem palavras, com a magnífica música de John Williams contribuindo para a emoção.
Stanley fala a Iris de seus problemas. Iris aprende a ver em Stanley o deserdado da sorte que conserva a pureza, os sonhos, os sentimentos. A relação afetiva entre os dois cresce e solidifica-se - mesmo quando discordam, discutem, brigam.
Num país como os Estados Unidos, em que o ensino básico é obrigatório, por lei, difícil imaginar um adulto analfabeto. Mas Stanley não sabe ler, escrever e este é o seu drama. "Você quer saber? Você está numa cidade. Você não pode ler as placas nas ruas. Está perdido... Não pode pegar um ônibus, não pode ler para onde ele vai", queixa-se Stanley.
Desglamorizado - apesar da fotografia de Donald McAlpine aproveitar com perfeição os exteriores, capturando as imagens da cidade, das fábricas - "Stanley e Iris" fala ao coração. Jane Fonda, 53 anos, há muito atingiu um estágio profissional que lhe permite escolher criteriosamente os personagens que interpreta - quando não produz seus filmes ("Síndrome da China", "Gringo Velho"). Assim, não seria apenas por alguns dólares a mais que aceitaria fazer Iris King, viúva, mãe de dois filhos. Sentiu nesta mulher uma empatia, uma dimensão para com o pensamento e ação - assim como, por certo, Robert de Niro, soube capturar no Stanley Cox daqueles personagens que estabelecem a densidade da esperança. Um excelente elenco de suporte, com personagens também bem desenvolvidos e sobretudo a dignidade e a ternura fazem desta produção de Arlene Sellers/Alex Winitsky um filme para permanecer na retina.
Lembrando o slogan petista, os operários Stanley e Iris enfrentam suas barras do quotidiano para, sem medo de ser feliz, encontrarem seus espaços. Fazendo isto com amor, esperança e muita afetividade - num filme de maior astral entre a produção contemporânea do cinema americano que, entre Rambos & Rockys, tem, felizmente, espaço para obras-de-arte como este filme que merece ser visto.
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