Amargo Despertar
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de setembro de 1974
Existe uma (triste) tendência em parte da crítica que se diz política em negar, passado algum tempo, os autores que marcaram a melhor fase de suas carreiras por uma obra atuante, sincera e honesta. Vittorio De Sica, italiano de Sora, 72 anos, está entre estes intelectuais que após uma contribuição das mais positivas ao cinema - ao qual vem se dedicando desde 1918, quando estreou como ator em "O Processo Clemenceau" (L'Affaire Clemenceau, de Edoardo Bencivega) - tem sido renegado nestes últimos anos, embora poucos - muito raros - se encorajem a negar o mérito de obras-primas como "Ladrões de Bicicletas" (Ladri di Biciclette, 48), "Milagre em Milão" (Miracolo a Milano, 51) e "Umberto D" (idem, 52). Foi preciso que há 3 anos, o impacto de "O Jardim dos Finzi-Contini" demonstrasse que o tempo só tem aprimorado a sensibilidade deste italiano meridional apaixonado, sensual, vigoroso tanto em seus trabalhos como ator como na maioria de seus filmes, apesar dos riscos de esquemas de superproduções como há 5 anos, em "Os Girassóis da Rússia" (I Girasoli).
"Amargo Despertar" (cine Condor, até hoje, seguramente, talvez merecendo segunda semana) é uma demonstração de que o velho De Sica continua lúcido, político e sincero, excetuando-se a fotografia em cores do correto Ennio Guarniere, este "Una Breve Vaccanza", tem todo o clima, amarga ternura e tom documental dos melhores momentos do Neo-Realismo, em sua fase mais aguda e cortante (1946/53) de discussão de problemas sociais-[econômicos]. Ao contar a história de Clara (Florinda Bolkan, em seu melhor trabalho no cinema até agora), uma humilde operária que, trabalhando das 7 às 7 horas, levantando às 5 horas da manhã e mantendo uma família numerosa - o marido (Renato Salvatore), inválido temporariamente, o cunhado preguiçoso, a sogra arterioscresosada e 3 filhos - encontra uma breve temporada num sanatório nas nevadas montanhas , um reencontro espiritual e um breve instante de amor, De Sica realizou um filme de imensa dignidade humana, sofrido a cada imagem - sem nunca cair no dramalhão. Após uma [seqüência] terrivelmente documental do monótono e terrível início de dia de Clara - o despertar, a corrida para o trabalho, as longas horas na poluitiva fábrica, "Amargo Despertar" passa para o clima de solidariedade das mulheres vindas de diversas classes sociais, unidas pela doença comum no asséptico sanatório - que pela atenção dedicada às beneficiárias da Previdência Social, apresenta neste aspecto um dado bastante positivo com relação à medicina socializada na Itália. Ali, no sanatório, o encontro das diversas mulheres - em seus dramas (nem todos aprofundados pelo roteiro de Cesare Zavattine) individuais, chegam a lembrar o tema de um dos melhores romances de Dinah Silveira de Queiroz filmado em 1954 por Luciano Salce: "Floradas da Serra", um dos mais marcantes trabalhos de Cacilda Becker (1921-1969), ao lado de outros jovens (então) artistas como Jardel Filho, Ilka Soares, Liana Duval, John Herbert, Lola Brah, Jaime Barcelos, etc.
"Amargo Despertar" é um filme sincero e honesto, prova de que as 71 anos - a produção é do ano passado - De Sica mantem-se fiel aos seus princípios de intelectual/cineasta voltado ao Homem e [à] sua dignidade - no caso fazendo um canto de amor a uma pobre operária - rica em sua dimensão de ser humano. Um filme de muita beleza, força e sinceridade, que merece ser visto!
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