Amélia e Clara, revelações veteranas para a nossa MPB
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 23 de dezembro de 1989
É sempre um risco apontar um(a) intérprete como revelação do ano quando, na verdade, este artista, em inúmeros casos, vem há anos batalhando pelo seu espaço. É o caso de Amélia Rabello, que estará em nossa edição dos melhores de 1989 como revelação do ano, mas que, na verdade, é uma estreante-veterana. Chegou agora ao seu primeiro elepê como solista (Velas/Polygram), mas com a esperiência, a bagagem e o rigor técnico de uma veterana. E não por acaso! São 16 anos de absoluta dedicação à MPB, em estúdios de gravação (emprestando sua afinadíssima voz às gravações alheias), em festivais e shows (no Brasil e no Exterior) e em discos coletivos.
Em 1972 ela subiu ao palco pela primeira vez, à revelia do Juizado de Menores, defendendo uma música ("Paralelo", de Ricardo Ventura/Tadeu Leal) no Festival Universitário da TV Tupi. A música tirou segundo lugar e ela gravou um compacto que embora tenha tocado em algumas rádios cariocas é hoje collector's iten. Portanto, ela deveria ter sido revelação de 17 anos passados, quando tinha apenas 16 anos de idade.
Mas os caminhos musicais são árduos. Pertencente a uma família da maior voltagem musical - irmã de Luciana (sra. Paulo César Pinheiro, poeta e letrista) e Rafael, o nosso maior virtuose de violão de 7 cordas; cunhada de Paulinho da Viola e esposa do tecladista Cristóvão Bastos, Amélia (o Maria do registro civil ela eliminou para fins artísticos), passou vários anos na Alemanha, ali estudando música e canto. Ao voltar, em 1980, encontrou um cenário difícil para quem, como ela, sempre identificou-se com a autêntica MPB: choro, baião, bossa nova e mesmo trabalhos mais experimentais. Assim, preferiu ficar em recolhimento, esperando dias melhores. Há três anos, com o mano Rafael e o amigo Toquinho, participou do Festival de Música da Córsega. Em 1987 fez o show Seis e Meia (Teatro João Caetano) ao lado do cunhado Paulinho da Viola e, em 1988, participou com três faixas de um lp em homenagem a Custódio Mesquita (1910-1945), editado pela Funarte.
Felizmente, neste ano de 1989, Amelia Rabello ganhou o seu primeiro elepê solo. Ivan Lins e Vitor Martins criaram o selo Velas e inteligentemente souberam chamá-la para fazer um elepê que se constitui num dos melhores do ano, produção de Paulo César Pinheiro, letrista em sete das belíssimas músicas por ela gravadas: "Cinzas" (com Cristóvão Bastos), "Depois dos Arcos" (com Luiz Moura/Afonso Machado), "Noturna" (Guinga), "Canção das Flores" (com Baden Powell), "Avesso" (novamente com Cristóvão Bastos), "Sete Cordas" (com Rafael Rabello, originalmente gravado por Rafael apenas instrumentalmente) e "Pássaro Sem Bando" (com Luiz Moura). Para completar, Amelia teve a carinhosa participação de Paulinho da Viola na faixa de abertura - "Labareda" (Baden/Vinicius) e ganhou do cunhado uma música inédita, "Ruas que sonhei"; homenageia Geraldo Pereira (1918-1955) com "Chegou o Dia" (parceria com Elpídio Viana, composta em 1945), inclui outro samba de Paulinho da Viola ("Não quero você assim"), e dá uma nova leitura ao belíssimo "Pret-A-Porter de Tafetá".
Uma podução esmerada como esta não poderia deixar de ter arranjos e músicos do melhor time, a começar pelo marido Cristóvão Bastos, o irmão Rafael Rebello, mais Marçal na percussão, Jorjão no baixo, entre outros. Enfim, um disco nota 10 de uma estreante-revelação que é, na verdade, uma veterana.
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Outra cantora magnífica, que aos menos avisados pode parecer uma estreante é Clara Sandroni, que aos 29 anos chega ao terceiro lp de sua carreira (Kuarup, novembro/89), o primeiro fora do esquema independente. Uma podução dentro do gabarito que faz da etiqueta de Mário Aratenha/Janine Houard, um dos melhores selos culturais do continente. Clara, filha de dois escritores dos mais conhecidos - Cícero e Laura Sandroni, chega a definir este como o seu primeiro grande disco, pois pode gravar "os grandes da MPB". E seus "grandes" são Chico Buarque ("Homenagem ao malandro"), Caetano Veloso ("Um Índio"), Gil ("Super Homem"), Milton Nascimento ("Clube da Esquina"), Paulinho da Viola ("E Daí") e Dorival Caymmi ("Santa Clara Clareou"). Mas ao lado destes monstros sagrados, há um repertório igualmente atraente. Por exemplo, o lado A abre com "Guardanapos de Papel", do uruguaio Leo Masliah, uma ode aos poetas, com letra adaptada para o português por Carlos Sandroni, com latinidade moderna e universalizada, onde Jaques Morelenbaum brilha tocando diversos violoncelos. Milton faz dueto em "Um Índio" de Caetano, numa parceria iniciada no lp de Milton "Encontros e Despedidas", quando Milton chamou Clara - que, este ano, dividiu com Paulo Moura, sua última excursão nacional. "Falta um Pé", dos irmãos Luciana e Carlos Sandroni, arranjo de Muri Costa e a participação especial de sua banda "Banana", é outra novidade do disco. No interlúdio de "Clube da Esquina", há um longo solo da dupla de violões que há tempos acompanha Clara, formado pelos violonistas Alfredo Machado e Henrique Lissovsky. Uma homenagem ao hoje esquecido Luís Vieira (Caruaru, PE, 12/10/1928) acontece com "Asa do Vento" (parceria com João do Vale), instrumentalmente valorizada pelo trio Manassés (violão e arranjo), Mirabô (violão) e Mingo (percussão). "E Daí", parceria de Milton com Ruy Guerra, destaca novamente os violões de Machado e Lissovsky e também o baixo de Popoff, autor da última faixa, "Arraial da Ajuda", onde os vocais sem letra de Clara se entrelaçam com o baixo e o violão de Popoff, a flauta de Lena Horta e as percussões de Marcos Suzano e Edu Szajmbrun.
Reunindo 50 músicos no total, gravado em DAT ou multicanal com vistas a futura edição em CD, das 17 músicas gravadas originalmente, onze foram selecionadas, fazendo deste mais um exemplo daqueles álbuns que vale o que custa. Se não encontrar em sua cidade, peça diretamente pelo reembolso postal: fones (021) 220-1623 ou 220-0494 ou carta à Avenida Rio Branco, 277/1005, CEP 20047, Rio de Janeiro.
LEGENDA FOTO - Amélia Rebelo: revelação do ano, com um disco esplêndido.
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