Anna faz a viagem musical no Brasil de dois séculos
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 26 de agosto de 1990
Há certos projetos culturais que transcendem o simples registro fonográfico: "Viagem pelo Brasil", que o Estúdio Eldorado produziu com o apoio da Secretaria da Cultura de São Paulo e Akron, é um deles. Uma notável pesquisadora e cantora, Anna Maria Kieffer, não se satisfaz apenas com o repertório atual e assim tem mergulhado em arquivos para redescobrir a música do passado. Há algum tempo fez um belíssimo álbum com exemplos dos cantos de "Marília de Dirceu". Agora, partindo das "Canções Populares Brasileiras" recolhidas pelos botânicos Carls Friedrich Phillip von Martius (Earlegen, 1794 - Munique, 1869) e Johann Baptist von Spix (-? - Munique, 1827) que vieram ao Brasil em 1817, agregados à uma missão científica austríaca. Chegaram ao Rio de Janeiro em 15 de julho de 1817 e durante dois anos e meio fizeram uma viagem pelo Interior do Brasil, de São Paulo a São Luiz do Maranhão, de onde embarcaram para Belém, subindo então o Amazonas. Além de um inventário com 6.500 espécies de plantas, especialmente Martius reuniu um imenso material etnográfico, filosófico e também de registros musicais, anotados, como agora Anna Maria Kieffer revela neste seu álbum documento. Tendo vivido 40 anos mais do que Spix, Martius pode dedicar ao Brasil além de "Reisen im Brasilien" (1823-1831, quatro volumes), uma grande e profícua obra científica.
Quem, em nossos dias, iria se interessar pelos temas recolhidos por Spix e Martius no século XVII se não fosse a admirável - Gisela Nogueira, executante de viola de arame e Edelton Gloeden, guitarrista, decruçaram-se sobre este material inédito, para selecionar um repertório belíssimo e revelador de exemplos de canções populares recolhidas em São Paulo ("Acaso são Estes", "Perdi o Rafeiro", "Qual será o Feliz Dia", "Escuta Formosa Márcia), Minas Gerais ("No Regaço da Ventura") e na Bahia ("Uma Mulata Bonita", "Vais-te Josino e Me Deixas" e "Prazer Igual ao que Sinto") que compõe o lado "A" do álbum.
No lado "B", além de quatro exemplos de "Melodias Indígenas" (Danças, Murás, Puris, Miranhas e do Peixe) e um Lundu, recolhidos por Spix e Martius, além do anônimo "Marília Meu Doce Bem", há quatro temas de autores identificados. A modinha "Beijo a Mão que me Condena" composta pelo padre José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 1767-1830) e editada postumamente, por Pierre Laforge, em 1837; o lundu "Lá no Largo da Sé", de Cândido Inácio da Silva (Rio de Janeiro, 1800-1838), "Saudades Fugi de Mim", modinha baiana, composta por Domingos da Rocha Viana Mossurunga (Salvador, 1807-1856), o lundu "Fora o Regresso", do médico José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 1808-1884), filho do padre José Maurício, com letra de Manuel de Araújo Porto Alegre e, por último, o lundu "A Marrequinha", de Francisco Manuel da Silva (Rio de Janeiro, 1795-1865) e letra de Francisco de Paula Brito (Rio de Janeiro, 1809-1861), tipógrafo, editor, poeta e jornalista.
Como se observa, trata-se de um repertório precioso, que exige uma atenta audição para o entendimento do valor histórico que existem em cada canção incluída. Um encarte, com excelentes textos de Anna Maria descrevendo, inicialmente em forma de crônica, o roteiro de Spix e Martius depois falando dos temas gravados - enquanto Gisela e Edelton focam aspectos dos instrumentos utilizados - ajuda a se mergulhar melhor nesta viagem brasileiríssima, que, sem dúvida, se constitui num dos mais preciosos álbuns culturais produzidos pelo Estúdio Eldorado. Em capa dupla, com reprodução na capa de uma vista da Serra das Figuras do Rio Maranhão, em 1818; no verso central, a Lagoa de Aves à margem do Rio São Francisco, em desenho de Spix e Martius - numa programação visual perfeita de Elisabeth H. Arimori, eis um exemplo de álbum para merecer destaque especial no IV Prêmio Sharp de Musica.
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