Login do usuário

Aramis

Aprendizado de Shirley na busca da felicidade

Há 24 anos, Lewis Gilbert, então no vigor de seus 46 anos, realizou um filme que traria um personagem tão fascinante que permaneceria na galeria dos anti-heróis simpáticos do cinema: Alfie. Retrato de um inglês que procura no donjuanismo a compensação de seus fracassos pessoais, Alfie - que no Brasil recebeu o título meio idiota de "Como Conquistar as Mulheres" - ficaria na retina especialmente pela magnífica atuação de Michael Caine como o personagem título e a trilha sonora, uma obra-prima da dupla Burt Bacharach - Mal David no auge da inspiração e que, instrumentalmente, ganhou a interpretação magistral de Sonny Rollins. No ano passado, o mesmo Gilbert, que ao longo de seus 41 anos de direção tem sido uma espécie de pau-para-toda-obra do cinema inglês, com altos e baixos, voltou-se a uma personagem feminina, mas sem vigor do Alfie de 1966: a prosaica dona-de-casa Shirley Valentine, criada pelo dramaturgo-compositor Willy Russell, e que valeu pela projeção internacional da atriz Pauline Collins, que interpretou a personagem título desde a opening night em Liverpool, foi para Londres, atravessou o Atlântico e após ser premiada na Broadway ganhou, naturalmente, o direito de chegar ao cinema. Lewis, cujas biografias indicam que aos 5 anos já atuava em filmes mudos e que contabiliza 35 longas como diretor, tem uma afetiva ligação aos palcos: além de seu passado como encenador de peças fez algumas boas transposições, inclusive de "O Despertar de Rita", do mesmo Willy Russell que lhe valeu uma indicação ao Oscar em 1983 (perdendo, porém para James Brooks, por "Laços de Ternura", do romance de Larry McMurtry). Desta vez Russel foi além: compositor assina a trilha sonora, tendo buscado apenas a colaboração do grego George Hatzinassios para as seqüências rodadas na ilha de Mikonos. Um argumento que estabelece uma natural empatia com o público feminino, ótima atriz, belos cenários e sobretudo a discussão do que representa a liberação para a mulher-dona-de-casa de seu universo cinzento, davam a "Shirley Valentine" condições de se tornar um filme tão marcante quanto foi "Alfie". Entretanto se o personagem masculino ao qual Michael Caine deu tanta vida há duas décadas e meia, em sua ciranda amorosa na Londres opressiva e solitária, esta Shirley não consegue a mesma identificação: Pauline Collins é uma excelente atriz - não resta dúvida - e a personagem que criou é aquele papel que para uma atriz de meia idade, nem bonita, nem feia, é o momento exato. Quantas Shirleys Valentines não existem no mundo, que, filhos já adultos, procurando seus caminhos, limitam-se a cozinhar para maridos mal-humorados, também frustrados em seus projetos de vida, vivendo um quotidiano tão desgastante? Neste aspecto entra a questão que impede "Shirley Valentine" adquirir um impulso maior e pesa para que decole nos sentimentos do espectador: o universo afetivo-familiar da mulher de meia-idade em crise, que fala com as paredes enquanto prepara as batatas fritas com ovos para seu marido Joe (Bernard Hill), jantar, anda pelas ruas úmidas de Londres e no encontro com a colega de colégio, Marjorie (Joana Lumley), que era a garota-modelo de descobre que hoje é uma prostituta de alta classe, atendendo clientes nas capitais européias. Isto leva a tomar uma decisão difícil: aceitar o convite de uma amiga feminista, Jane (Alison Steadman) e passar 20 dias na turística Mikonos, na Grécia. O óbvio acontece: o envolvimento com um charmoso barman local, Costa Caldes (Tom Conti) e, finalmente, a decisão de não mais retornar aos seus dias numerados em Londres. Uma decisão a qual é levada pela consciência de uma liberdade tardia - e não por apenas uma paixão repentina. Entretanto o final acaba sendo uma concessão familiar, em aparente happy end. "Shirley Valentine" não é um filme ruim. Ao contrário, tem méritos, traz elementos talentosos e, sobretudo faz uma abordagem da situação da mulher que, paquidermicamente, assume sua "função" de mãe-esposa. Entretanto, o filme deixa de aprofundar-se em muitas questões - e como não fica apenas na comédia - o resultado deixa a desejar. Quem não exigir mergulhos mais profundos poderá se entusiasmar com a inglesa Shirley Valentine mas os que esperavam uma dimensão de Alfie (quando será, aliás, que este magnífico filme terá uma apresentação pela televisão ou lançamento em vídeo?) não deixará de sair do cinema (Lido II, 5 sessões) com uma certa frustração.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
24
12/09/1990

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br