Charquetti, médico e repórter, agora está com as estrelas ( e partiu na noite de Natal)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de dezembro de 1985
Antes, todos os caminhos iam
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros
poucos
E eu mesmo preparo o chá para os
fantasmas.
("Envelhecer", Mário Quintana)
O Peti escolheu a hora que achou melhor para partir. Ele não gostava de multidões ao seu redor!
Na quente madrugada de Natal, entre os sons de grilos e o perfume das flores no Cemitério Parque Iguaçu , o comentário de Gui Fernando Mourão, 38 anos, emociona os poucos amigos ali presentes naquele momento. Peti - a forma carinhosa e familiar com que Percyval Charquetti, médico, jornalista e, sobretudo, notável se humano, era chamado por seus parentes, havia morrido ao entardecer deste Natal, no Hospital São Vicente, onde esta internado há mais de duas semanas.
Charquetti - imagem de duas raças em extinção neste nosso mundo: o médico humanitário, humilde e pobre - corporificação perfeita dos melhores personagens do inglês A.J. Cronin. E o repórter de uma época pobre, mas risonha, franca, sincera e, sobretudo, honesta da imprensa paranaense. Acima de tudo, o homem e o amigo que deixou em cada uma das pessoas que com ele tiveram a felicidade de conviver, lembranças de uma pessoa dotada de méritos extraordinários.
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Antiga sede do jornal O Estado do Paraná, na Rua Barão do Rio Branco, 550 ano: 1956. Ao chegar para o trabalho, à noite (na época, as redações funcionavam madrugada adentro) - Charquetti surpreendeu-se com as luzes apagadas. Ao preparar-se para subir a escada que levava à redação, no primeiro andar, uma surpresa: dezenas de velas acesas e os colegas, com João Dedeus Freitas Netto, secretário, à frente, cantando o parabéns. Não era o seu aniversário e a surpresa foi grande: Charquetti havia ganho o Prêmio Esso de reportagem, na primeira edição desta promoção hoje consagrada como a maior láurea do jornalismo brasileiro. Uma série sobre os homens que buscavam ouro no Interior do Paraná - numa espécie de Serra Pelada do início dos anos 50 - "Garimpo, Canãa de Ilusões", com imagens do fotógrafo Romário Amádio, havia merecido a premiação maior num concurso nacional. O texto inteligente, criativo e sobretudo jornalístico de Charquetti, falando dos sonhos de milhares de homens, suas desventuras e dramas, transformou-se num clássico de nossa imprensa, dando a O Estado do Paraná - que havia sido fundado em 17 de julho de 1951 - prestigio nacional.
Charquetti esteve presente, pelo menos durante os primeiros 13 anos de O Estado do Paraná, na cobertura dos mais importantes fatos ocorridos no Paraná. Em 1957, quando os posseiros revoltaram-se no Sudoeste, ameaçando explodir uma revolução camponesa em Pato Branco e arredores, Charquettie Oswaldo Jansen - fotógrafo que substituira a Romário - passaram algumas semanas na região, Jansen, hoje com 62 anos, aposentado, excelente fotógrafo, trouxe centenas de imagens - algumas das quais foram publicadas pela imnprensa nacional e até mesmo na "Life", então a grande revista americana de atualidades. Charquetti durante todo o tempo havia convivido com posseiros, jagunços e militares, bebendo com eles nos botequins da região, atravessando madrugadas, mas sem fazer uma única anotação. Oswaldo até preocupou-se nesta falta de anotações. Mas bastou Charquetti chegar à redação, sentar-se defronte uma velha Remington para fazer desaguar laudas e laudas com o melhor material jornalístico, que, mais uma vez dava a O Estado do Paraná, aprimazia de oferecer uma cobertura extrordinária de um dos fatos marcantes da vida do Paraná - aliás, até hoje pouco estudado e que tem, justamente naqueles textos jornalísticos, material de referência.
CHARQUETTI SEM LÁGRIMAS
- O Percyval Charquetti que seus amigos - e eles são muitos, espalhados em tantos círculos - preferem lembrar é o do homem marcante em sua simplicidade. Um homem que nunca se preocupou em comprar roupas ou mandar lustrar os seus sapatos. Ao contrário, a simplicidade com que Charquetti se trajava - desleixo para muitos que não o conheciam em sua dimensão - lhe dava um ar de andarilho ou filósofo hippie, mesclado a um rosto que, após ter deixado crescer o cavanhaque branco, lembrava, levemente, a figura revolucionária - mas também poética - de Ho-Chi-Mim.
Este Charquetti despreocupado com as coisas materiais, que jamais cobrou uma consulta médica - ao contrário, inúmeras e inúmeras vezes dava os últimos cruzeiros que carregava para os pobres adquirirem os remédios nescessários - foi, durante 40 anos, um exemplo de médico idealista, a ponto de, quando Hélio Teixeira, hoje chefe da sucursal da "Veja"no Rio, então na sucursal de Curitiba , elaborou uma matéria sobre os últimos médicos humanitários do Brasil", ter focalizado está que durante toda sua longa vida profissional dividiu-se entre trabalhos em vários hospitais de Curitiba e, especialmente, na Cooperativa do Rodoviários do 9º Distrito do DNER. Atendendo os mais humildes servidores de localidades distantes e esquecidas - Areia Branca, Tunas, Pedra Preta e Adrianópolis, ao longo da antiga Estrada da Ribeira, numa das regiões mais pobres do Estado. Ali, na convivência com os chamas arrigós - definição dada, sem maldade , aos operários rodoviários - Charquetti encontrava-se com a simplicidade que sempre o caracterizou, ele mesmo que sempre teve orgulho de suas origens caboclas - canceriano do dia 22 de julho de 1917, de Cerro Azul (embora, em alguns documentos conste como natural do Rio Branco do Sul). Este Charquetti que fazendo as cansativas e longas viagens pela Estrada da Ribeira, atendendo a milhares de pessoas que o tinham como único protetor em termos de saúde , era o mesmo que, ao chegar à noite, na redação de O Estado - e sem demonstrar jamais cansaço ou má vontade - dividia-se entre textos e o atendimento a colegas de imprensa que, quando tinham problemas de saúde, sempre o procuravam.
O HOMEM 7 A NOITE - Como muitos de sua geração, o hoje bacharel João Baptista Mathias, 43 anos, delegado de 2ª classe lotado na Delegacia de Crimes contra a Fazenda, recorda que não era fácil, mesmo aos 18 anos, ter a disposição física que Charquetti mostrava aos 40 . Arquivista - depois revisor de O Estado, Mathais [Mathias] Bofetada foi um dos grandes amigos de Charquetti e , na madrugada de Natal, um dos três únicos que permaneceu toda a noite na capela do Cemitério Parque Iguaçu - ao lado do enteado Gil, do sobrinho Paulo e da filha Tangriane, Mathias recordava o Charquetti sem lágrimas, o homem sempre pronto a atender ao companheiro e sobretudo a pessoa mística que nele convivia: de um lado o jornalista prático, de um texto objetivo, mas de outro o estudioso da Parapsicologia - tema sobre o qual manteve, até recentemente, uma coluna dominical em O Estado. Pesquisador dos fenômenos paranormais, Charquetti era uma espécie de caçador de fantasmas como lembra seu enteado, Gil. Há 20 anos, para um concurso de reportagens patrocinado pela Prefeitura de Curitiba (no qual acabamos obtendo o primeiro lugar com a série sobre os cinemas em Curitiba), Charquetti fez pesquisas sobre "os fantasmas de Curitiba", reunindo estórias de todos os fatos fantásticos que viviam na imaginação e no folclore da cidade.
Ma, entre tantas outras reportagens que mereciam uma cuidadosa edição em forma de livro. Livro este que poderia também revelar muitas dezenas de textos originais - entre contos, novelas e mesmo poesia, que Charquetti fazia e, em sua forma displicente, deixava inéditos (alguns, salvos pela família, estão num pacote de anotações que merecem atenção cuidadosa).
Um Charquetti boêmio, companheiro de longas e etílicas e jvenis madrugadas de uma geração da imprensa que aos poucos se vai - como o seu maior amigo, Cid Zimermann - por tantos anos, o "médico"das velhas oficinas de O Estado, seu irmão Mozart - ambos já falecidos: Cem Gramas (Domingos Faria), o magro e lépido repórter policial da Curitiba dos anos 50 - nos quais Raffles de Meio Quilo completavam a tríade de repórteres atuantes do setor policial, área que Charquetti também convivia - mais por solidariedade na madrugada, já que humanista e homem sensível, se chocava, muitas vezes, com a violência.
Sim, cada um dos amigos de Charquetti - sejam da área médica, sejam, os que por ele, de alguma forma foram atendidos, e, especialmente os da imprensa - daquela geração que com ele iniciaram nos anos 40, no antigo "O Dia" - Samuel Guimarães da Costa e Freitas Neto - ou mesmo os mais jovens, que conheceram em O Estado , do qual foi um dos fundadores - têm muito a falar, a lembrar desta figura humana única, deste homem que na simplicidade, na humildade, na modéstia, foi lição de vida para todos nós. Um Charquetti sem lágrimas, companheiro de noites de trabalho & boêmia - que tantas vezez, levou companheiros para fazer refeições em sua casa, com a compreensão de sua esposa, Izaltina, enfermeira por quase 30 anos do antigo IAPFESP (falecido há 3 anos), e que nas suas estórias, no seu trabalho e sobretudo no seu caráter, deixa, mais uma vez, menor este nosso mundo. Nas palavras que se busca para um arremedo necrológico capaz de transmitir um pouco do que foi e representou Charquetti, só vejo uma formapara definí-lo e guardar a sua eterna lembrança.
Foi a melhor pessoa que conheci.
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