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Aramis

A grande noite da Curitiba dos anos 60

No patamar da escadaria que conduzia à Marrocos, no primeiro andar do sobrado na Rua Marechal Deodoro, n.º 5, esquina com a Praça Zacarias, o então jovem jornalista Enock de Lima Pereira cumprimenta afetivamente o velho porteiro e diz: - "Cachimbo", amigo! Gostaria um dia, de ter a verve de Rubem Braga para lhe dedicar a crônica que você merece. Boina, manta de lã, protegido com um surrado sobretudo preto, para enfrentar o frio daquela noite de julho de 1959, o velho Pedro Martins - mas que todos conheciam pelo seu inseparável cachimbo, responde ao cumprimento do jornalista, acrescentando: - A noite promete! Há bons shows e chegaram belas argentinas. Enock, citando Antônio Maria, responde: - A noite é uma criança, Cachimbo. E nela há lugar para todos nós. xxx Cachimbo era o porteiro da Marrocos, a mais sofisticada casa noturna na Curitiba dos anos 50 e parte da década de 60. Conhecia a maioria dos fregueses, sabia quem era quem, estava sempre pronto a auxiliar as gringas que enfeitavam suas noites e tinha ótima camaradagem com os músicos, como Breno Sauer - hoje radicado em Chicago (*), que traziam as primeiras notas da bossa nova para a noite curitibana no final dos anos JK. Por onde andará o velho Cachimbo? Possivelmente já morreu - e ninguém sabe sequer quando. Também desapareceu outro porteiro folclórico da mesma época, o João Cachorro, este o oposto do Cachimbo: alto, gordo, preto, estava permanentemente de mau humor, disposto a brigar. Um verdadeiro leão-de-chácara da Caverna Curitibana que fazia jus ao apelido. Se Cachimbo era tolerante com a entrada dos menores de 18 anos na Marrocos - embora o delegado de Costumes, Miguel Zacarias, passasse todas as noites pela casa, onde tinha a melhor mesa e todas as mordomias que o cargo lhe garantia, vez por outra os que ainda não tinham o documento de maioridade conseguiam subir e, escondidos nos pontos mais escuros das boates, vibrar com a sucessão dos shows - "com os mais famosos artistas nacionais e internacionais", como anunciava o mestre-de-cerimônias Odilon Ramos - que anos depois tentaria a política. Entre os shows, ao eróticos olhares às sofisticadas e tentadoras moças - muitas falando em portunhol - que chegavam em levas para alegria de uma clientela muito especial. Afinal, Curitiba beneficiava-se com os reflexos do ciclo do café e os fazendeiros do Norte quando chegavam na cidade representavam clientes generosos, capazes de oferecer tudo que as belas companhias desejavam. Circulando entre as mesas em que estavam "meus amigos, mais que clientes" - mas sempre de olhar atento na caixa, onde sua jovem e belíssima esposa, Ediluz, controlava com todo o rigor os comandos de um batalhão de garçons, reinava absoluto o gordo Paulo Wendt (Paranaguá, 25/10/0915 - Curitiba, 20/07/1966). Chamado de "O Rei da Noite", Paulo Wendt era o grande comandante das madrugadas curitibanas. Empresário de visão, fazia da Marrocos uma boate de primeira linha, com dois a três conjuntos musicais fixos e atrações musicais que iam de Salomé Parisio (por onde andarás?) a internacional Leny Everson (1910-1984), que com foxes e ritmos do Caribe, uma voz potente - e tendo em "Jezebel" o seu maior sucesso, havia conquistado audiências americanas. Era ao menos assim que ela era apresentada - como grande show da noite, depois de trios paraguaios, espetáculos de dança e danças semi-eróticas de jovens de corpos perfeitos mas pudicamente cobertas de biquinis que estimulavam a imaginação. Shows que hoje acabariam em qualquer jardim de infância - mas, na época, eram vistos como o máximo da permissividade e luxúria pela hipocrisia moral que combatia as atividades não só de Wendt, mas de outros empresários da noite curitibanas de 40 anos passados. Paulo Wendt, como o seu principal concorrente - o paulista João Pedro Guimarães, dono da Moulin Rouge, ex-Elite, depois Jane 2, que mudou ao menos três vezes de nome e endereço - movimentava a noite da cidade de 300 mil habitantes. Wendt não ficou só na Marrocos: espírito empreendedor, chegou a promover temporadas no então inacabado, mas já funcionando, Guairão, desde teatro de revistas até companhias de óperas. Ao lado da Marrocos, seu reinado ampliava-se em restaurantes e outras casas, uma delas em pleno Passeio Público, com o nome apropriado de Tropical - espaço que hoje é apenas a cozinha do Lá no Pasquale - e na qual trabalhava um jovem trombonista da banda da EOEIG, que por suas noitadas acabava se atrasando no quartel e ganhando prisões: o notável Raulzinho de Souza, que hoje, após 25 anos de andanças pelo Brasil e Exterior, retornou, aqui criando uma big band, conforme contamos há algumas semanas. xxx A grande noite curitibana dos anos 50 e 60 - com tantas estórias que se perdem na proporção que seus personagens vão deixando o nosso mundo - teve ao menos dois cronistas: Reinaldo Egas e Mauro Reinaldo Egas, na verdade o inesquecível "Renatão" (Muniz Ribas, Lapa, 17/8/1933, Curitiba, 14/3/1989), em 1957, quando a Tribuna do Paraná - fundada em 17 de outubro de 1956 - se firmava como o grande vespertino da cidade, demonstrou ao secretário João Féder (hoje conselheiro do Tribunal de Contas) que a noite era um campo fértil em termos de notícias, pessoas e estórias. Assim, somada a sua sensibilidade de escritor e poeta - que no dia-a-dia da redação não poderia exercer, "nascia" Reinaldo Egas que com uma coluna na terceira página do primeiro caderno, "Ecos da Noite", trazia a cada dia uma crônica de abertura - no melhor estilo do pernambucano Antônio Maria (Araújo de Morais, 1921-1964), seguida de notícias sobre as muitas casas noturnas da cidade - sempre ilustradas com fotos das belas cantoras, dançarinas, show-girls ou simples presenças alegres nas madrugadas boêmias. Quando Abdo Aref Kudri, hoje dono do "Diário Popular", fundou o "Correio do Paraná" e levou Renatão para secretariá-lo, o espaço da noite já tinha tantos leitores que um de seus melhores amigos e colegas, Enock de Lima Pereira, foi seu sucessor natural. Curitibano da Praça Osório, com sonhos de se tornar escritor - chegou na redação da Tribuna via um concurso de contos organizado por Aurélio Benitez, no qual foi o primeiro classificado, o sempre alegre Enock logo se revelaria um excelente repórter. Mas como Renato - e outros amigos que se juntariam ao grupo - Renato Schaitza, Milton Camargo de Oliveira, Roberto Souza, Ducastel Nycz, entre tantos - vivia aquela época do doce pássaro da juventude, de saudável boêmia - numa cidade diferente da que hoje nossos filhos conhecem. Aos 57 anos, completados no dia 14 de fevereiro, afastado das redações há quase 10 anos - (sua última participação regular foi como corajoso colunista oposicionista em O Estado), Enock aceitou o convite da jornalista Maí Nascimento Mendonça, diretora do Patrimônio Histórico da Fundação Cultural e fez uma rápida viagem ao tempo. Foi à Biblioteca Pública para reler as colunas daquela época e produziu um texto emotivo, nostálgico e importante em termos de informação de nossa cidade. Assim como "Ecos da Noite", de Renato Muniz Ribas, ganhou uma bela edição na época em que o publicitário (e ex-boêmio) Sérgio Mercer, hoje o bilionário proprietário da agência Parceria, presidia a Fundação Cultural de Curitiba (bons tempos, em que aquela instituição tinha gente competente e simpática em seus cargos maiores). Maí Nascimento, sensível sempre à nossa vida cultural não oficial (é esposa de um jornalista que também ama a noite, só que tendo conhecido Curitiba somente 20 anos depois, o cartunista Dante Mendonça) decidiu publicar um volume com os textos de Mauro - o pseudônimo que Enock escolheu. Ao sabor da memória, com falta de detalhes - bem que ele tentou colher depoimentos de figuras da época, "mas não os encontrei, pois a maioria parece que já morreu" - "A grande noite" será uma obra enriquecedora da coleção "LeitE QuentE". Faltam fotos - os arquivos, infelizmente, são falhos, mesmo nas redações dos jornais, e há muitos brancos a serem completados. Mas, na espontaneidade de quem entendeu, sentiu e viveu aquela época, os textos ágeis de Enock/Mauro valerão como uma viagem ao tempo perdido. Quem quiser colaborar - com fotos ou mesmo lembranças adicionais - pode telefonar, pois a obra está ainda em fase de editoração. Como diz o autor de "Suas mãos", é sempre citado por Enock - o grande Antônio Maria, repetindo Shakespeare: a noite é uma criança - e em suas estórias sempre cabe mais um... Nota (*) Gaúcho de Porto Alegre, Breno Sauer, 64 anos, seria um dos primeiros músicos do Brasil a utilizar, com modernidade, o acordeon e a introduzir em seu quinteto o vibrafone. Contratado pelo La Vie-En-Rose, Breno e seu grupo vieram para Curitiba, aqui permanecendo 3 anos (1960/62). Hoje, Breno vive nos EUA , e o guitarrista do grupo, Alemão (Olmir Stocker) também se destacou como solista. Do grupo, o baterista Pirata (Afonso Cid, 70 anos) ficou em Curitiba. Na semana passada, em visita a familiares, de passagem para Porto Alegre, Breno esteve com alguns amigos curitibanos.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
12/05/1991

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