Como se queima um cult-movie na semana do Oscar
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 08 de abril de 1988
Incrível! Em plena semana dos Oscars, nos quais as atenções gerais se voltam para a festa de maior marketing do cinema e com os nominados chegando às telas, com a maior promoção, não é de ver que a Fama Filmes está queimando, numa pavorosa fogueira, um filme-de-arte, capaz de encontrar um público específico mas dentro de um lançamento criterioso, mas nunca desperdiçado como aconteceu: "Daunbailo" (Down By Law), de Jim Jarmusch, desde ontem em exibição no Bristol - no qual estava em cartaz "O Sobrevivente/The Running Man", que apesar do halterofilista Arnold Schwarzenegger, parece que não faturou o suficiente para continuar correndo em dois cinemas. Agora está somente no São João - um cinema popular, barra-pesada em termos de freqüência. "O Sobrevivente", apesar de ser uma fita de ação, tem alguns créditos que o recomendam - especialmente para quem se interessa pela ficção científica e a televisão. Por que então tirá-lo de cartaz no Bristol e substituí-lo por um filme como "Daunbailo" que, necessariamente, deveria ter uma cuidadosa estréia em outra época?
CULT MOVIE
No I Festival Internacional de Cinema, Vídeo e Televisão do Rio de Janeiro, em novembro de 1984, a fita mais paparicada das midnight movie que Fausto Canova organizou no Bruni-Ipanema foi um filme em preto-e-branco chamado "Stranger Than Paradise". Simples, com apenas meia dúzia de intérpretes, uma história trivial, "Stranger Than Paradise" ocupou espaços imensos dos jornais e as sessões em que foi apresentado estouravam de público.
Antes, havia exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que Leon Cakoff organiza em São Paulo. Também entusiasmou os paulistas. O interesse por "Stranger..." foi tamanho que logo começaram a circular cópias piratas em vídeo e, meses depois, não havia uma única locadora de cidade com mais de 50 mil habitantes que não explorasse as cópias. O que se faturou em cima do filme de Jim Jarmusch não foi mole.
Tanto é que Cacá Diegues, seu amigo, tentou acertar o lançamento do filme no circuito comercial mas acabou desistindo: a capacidade de público havia sido consumida com a pirataria em vídeo. Motivo para que Cacá soltasse os cachorros nos responsáveis pelo roubo do filme de seu amigo.
No ano retrasado, no III FestRio, mais uma vez o grande acontecimento da promoção Midnight Movies foi a apresentação do segundo longametragem de Jarmusch: "Down By Law". Se falou tanto neste filme, novamente uma produção modesta, em branco e preto, que para os leitores menos avisados, a impressão era de que o filme estava na disputa oficial e que Jarmusch havia vindo ao Rio de Janeiro. Páginas dedicadas a glorificar o filme, cujas (pouquíssimas) sessões estiveram superlotadas.
Desta vez os piratas do vídeo não conseguiram comercializar o filme. Algumas cópias podem ter sido feitas mas com maior fiscalização, as mesmas não circularam tanto quanto "Stranger Than Paradise". E uma nova distribuidora, a Skylab, comprou seus direitos e o lançou com o título original aportuguesado: "Daunbailo". Afinal, havia se escrito tanto que "Down By Law" já havia pegado junto a faixa interessada - especialmente os jovens.
Lançado comercialmente no Rio e São Paulo, vem fazendo boa carreira. Mas considere-se que naquelas cidades há um público jovem, realmente interessado em cinema e que busca a informação. Os segundos cadernos dos grandes jornais, mais as revistas, deram ampla cobertura ao filme.
Agora, em outras cidades, o buraco é mais embaixo!
FILME DA MODA
Muita gente que ouviu falar em "Down By Law" e vai assistir agora ao "Daunbailo" pode se decepcionar. O filme é em preto e branco, sem superstars e uma narrativa relativamente parada. Ou seja, diferente do esquema tradicional. É um filme que exige reflexões e, naturalmente bom preparo. Portanto, lançá-lo, como fez a Fama Filmes, nesta semana do Oscar, sem qualquer promoção especial (uma pré-estréia, por exemplo) é loucura. O material que o bom Ademar Cavalcanti distribui mostra como a distribuidora não sabe trabalhar: ao invés de fornecer um portfólio com xerox das centenas de excelentes textos publicados a respeito, vem apenas uma incompleta ficha técnica e um depoimento (sic) de Jarmusch, de 10 linhas, que nada esclarece.
E um filme como este exige informação adicional. Se a sua estréia não ocorresse tão inesperadamente, pretendíamos inclusive abrir maior espaço (o que, se o filme permanecer em exibição, faremos na próxima semana).
De momento, aqui apenas algumas dicas. De princípio, é bom esclarecer, "Down By Law", na gíria marginal de Nova Iorque, significa estar preso, mas pode também significar manter-se frio e astuto de uma situação difícil. Os dois sentidos são plenamente explorados no filme. Abrasileirando-se a expressão, se criou um neologismo que até pode pegar.
Como escreveu David França Mendes, na "Folha do Festival" - house-organ do FestRio (129/11/86, nº 3), então ainda sob o impacto da primeira visão do filme (e este é o tipo do filme que manteve várias revisões), aparentemente (e dizemos aparentemente, porque cabem muitas leituras e interpretações) conta a história de três marginais que se encontram na cadeia.
O primeiro dos três presos é Zach (Tom Waits, hoje já conhecido como compositor e cantor drop-out no Brasil, três elepês aqui editados pela WEA), um disc-jockey desempregado que para ganhar mil dólares aceita levar um carro de um lado a outro da cidade. O carro é interceptado pela polícia, que o revista, encontrando no porta-malas um cadáver. O segundo preso é Jack (John Lurie, também músico, líder do grupo Lounge Lizards, e que já havia trabalhado em "Stranger Than Paradise"), que é preso ao tentar "proteger" uma adolescente. O terceiro preso é o italiano Bob (o comediante italiano Roberto Benigni, a grande revelação e com quem Jarmusch faria, no ano passado, um curta-metragem que foi sensação no último festival de Cannes). Bob acaba de chegar aos EUA e pouco fala de inglês. Enquanto Zach e Jack são marginais presos por acaso, quase inocentes, Bob, honesto imigrante, foi preso por um crime de verdade: matou um homem num jogo de cartas.
Aparece uma oportunidade e os três fogem da cadeia. Bem, não vamos contar o resto do filme, que tem inúmeros aspectos para serem analisados. A fotografia em p&b, as músicas de Waits, ironias, simbolismo, etc.
Enfim, um cult-movie da mesma dimensão de "Malpertius" (aquele belíssimo filme que o Chico Alves e o Geraldão Pioli assassinaram, exibindo-o somente uma semana no Groff há alguns meses) que, sinceramente, esperamos que consiga permanecer mais de uma semana. Pois, se for tratado apenas com base na fria bilheteria, será retirado de cartaz e só voltará na sessão da meia-noite do Groff, nas quais, aliás, o bom Chico tem também matado ótimos filmes que mereceriam reprises regulares. Por exemplo, neste sábado (e domingo, às 10,30 horas) ali reprisará "O Exército Inútil", de Robert Altman. Uma pequena obra-prima, baseada numa peça de teatro, premiada em Cannes (troféu coletivo aos seus 5 intérpretes) e que, estamos insistindo para que seja reprisado regularmente. Inclusive porque é um filme que tem muito a ver com "Platoon" (Edmar Pereira, do "Jornal da Tarde", lucidamente, o viu como uma espécie de prólogo do premiadíssimo filme de Oliver Stone).
A propósito: no cine Ritz, em exibição "Por Amor Também Se Mata" (The Gypsy and the Gentleman), de Joseph Losey (1909-1984), rodado há 31 anos passados na Inglaterra, com Melina Mercouri (hoje ministra da Cultura na Grécia), Keith Michel e a grande Flora Robson. Lançado no Cine Palácio, em 1959, este filme vale como se fosse uma estréia. Vamos ver se fica pelo menos uma semana em cartaz.
No Luz retorna um dos dez melhores filmes de 87: "O Declínio do Império Americano", de Denys Arcand - injustiçado tanto no FestRio-86 como no Oscar (foi candidato mas perdeu). Vale a pena rever. No Groff, outra boa reprise: "Possessão", do polonês Andrzej Zulawski, com a francesa Isabelle Adjanini. Três excelentes programas. Vamos ver se Chico cumpre a promessa e faz com que "The Outsiders" de Coppola e "O Exército Inútil" retornem também em programação normal.
No mais, a semana tem apenas duas estréias: o science-fiction de Tobe Hooper ("Poltergeist") - "Invasores de Marte", com Karen Black e Timothy Bottons (visto na semana passada na obra-prima "Uma Arma para Johnny") que, finalmente, Chico Alves reprisou no Groff.
No Lido II, uma comédia policial de Brian De Palma ("Scarface", "Os Intocáveis") - "Quem Tudo Quer... Tudo Perde"(Wise Guys), com gente pouco conhecida no elenco - Danny De Vito, Joe Piscopo e Harvey Ketell.
O resto é Oscar!
LEGENDA FOTO 1 - "Dawn By Law", o cult-movie de 87, que foi tão curtido pelos cariocas que ficou sendo chamado "Daunbailo", estréia da forma mais errada, em plena semana do Oscar. Mas não perca este belo filme, que traz no elenco o famoso compositor e cantor marginal Tom Waitts.
LEGENDA FOTO 2 - Tom Waitts, John Lurie e Roberto Benigni em "Daunbailo", de Jim Jarmusch, um cult-movie desperdiçado no cine Bristol. Não perca!
Tags:
- Ademar Cavalcanti
- Andrzej Zulawski
- Arnold Schwarzenegger
- Brian De Palma
- Cacá Diegues
- Chico Alves
- Cine Palácio
- Cinemas de Curitiba
- Danny De Vito
- Denys Arcand
- Down By Law
- Edmar Pereira
- Fama Filmes
- Fausto Canova
- FestRio
- Folha do Festival
- Geraldão Pioli
- III FestRio
- Jim Jarmusch
- Jornal da Tarde
- Joseph Losey
- Karen Black
- Leon Cakoff
- Melina Mercouri
- Midnight Movies
- Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
- No Groff
- No Luz
- O Declínio do Império Americano
- O Exército Inútil
- O Sobrevivente
- Oliver Stone
- Os Intocáveis
- Robert Altman
- Roberto Benigni
- Stranger Than Paradise
- Televisão do Rio de Janeiro
- The Outsiders
- Tobe Hooper
- Tom Waits
- Tom Waitts
- Uma Arma
Enviar novo comentário