Gillespie, concerto para a história do jazz
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 24 de maio de 1986
Se alguns dos admiradores de Dizzy Gillespie imaginaria que seu clássico "Night in Tunisia" estaria reservado para o grande final de sua única apresentação em Curitiba (auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, quinta-feira, 22), teve uma surpresa excelente.
Embora o seu standard tenha sido um dos mais belos momentos da noite, Dizzy reservou eletrizantes temas inéditos para o final, com um balanço bem latino - já que desde 1956, quando veio ao Brasil pela primeira vez, apaixonou-se por nossos ritmos. Não faltaram, inclusive, citações de músicas brasileiras - como a suave brincadeira de Sayd Abdulal-Khabyyr, no sax-barítono, em relação "A Banda" (Chico Buarque) - depois de ter mostrado todo o seu virtuosismo, quando, em solo de flauta, executou um tema de Bach, no discreto equilíbrio da vassourinha que seu filho, Nasyr Al-Khabyyr, executou na bateria.
Os dois Al-Khabyyr - o pai Sayd e o filho Nasyr - foram a grande revelação em termos instrumentais, nesta sexta temporada que Gillespie faz no Brasil. Instrumentistas da maior criatividade, com um balanço maravilhoso, Sayd Abdul, com diferentes saxofones (e também em flauta) e seu filho, Nasyr, baterista de muito swing, encantaram os ouvidos. Mas, em termos harmônicos, a grande força nesta excursão de Dizzy Gillespie é de seu veterano pianista, Walter Davis Jr., 57 anos, aparência de quarentão, que já em 1956 o acompanhava ao Brasil, quando, por cinco noites consecutivas (8 a 12 de agosto), então na liderança de uma big band, onde estavam, entre outros virtuoses, Quincy Jones (trompetista), Rod Lewitt, Melba Liston e Frank Rehack (trombones); Jimmy Powell, Phil Woods, Benny Golson, Billy Mitchel e Marty Flax (saxofones); Nelson Boyd (baixo) e Charlie Persip (bateria).
Daquela excursão, Dizzy recolheu inspiração para um de seus mais profundos temas - por ele dedicado "à América Latina" e espanholamente intitulado "Con Alma". E, no seu profundo pistão de contrapontos aos teclados maravilhosos de Walter Davis Jr., "Con Alma" foi o momento mais bonito da noite - no que até uma suave luz azul contribuiu bastante, aliás, no único momento de inspiração do técnico que fez a iluminação (no total, as luzes foram catastróficas, retirando o clima que o espetáculo exigia).
Aos 69 anos, John Birks Gillespie continua a ser o "Dizzy" que o faz um dos mais bem humorados artistas da história do jazz. Ao contrário de 10 de dezembro de 1979, quando, com bons motivos, fez uma apresentação em Curitiba com toda irritação (conforme aqui comentamos, a excursão havia fracassado desde o início, em Buenos Aires), desta vez ele esbanjava bom humor. Ensaiou passos de dança no palco, fez piadas em inglês, falou algumas frases em português e, sobretudo, buscou dar grande espaço aos seus músicos - Sayd, Nasyr, Davis Jr. e também ao jovem baixista, John Gregory Les - também um craque em seu instrumento.
Difícil identificar a maioria dos temas apresentados, já que dentro de seu espírito de renovação constante, Gillespie escolhe o repertório momentos antes de entrar no palco. Da mesma forma, nos últimos anos, quando passou a se apresentar com pequenos conjuntos, há sempre instrumentistas novos (mesmo os que têm mais idade) em seu trabalho, mas que com ele se identificam. Afinal, passar pelo grupo de Gillespie - como pelo Jazz Messengers de Art Blakey - é curriculum maior para qualquer jazzista. O resultado é emocionante e além de seu virtuosismo instrumental, Gillespie mostra também estar com uma voz perfeita, identificando certos temas - e chegou a grande profundidade, especialmente nos blues, dos quais é um vocalista incrível. Sabidamente, Gillespie não se esgota demais - escalando suas intervenções (e com isto dando aos seus músicos chance de aparecer), para chegar ao final em ótima forma, em plenas condições de oferecer o número extra - que o público (menos de meia casa com ingressos vendidos), exigia, aplaudindo em pé.
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No final, nos bastidores, a primeira pessoa que Dizzy encontrou foi um amigo de 30 anos: o jornalista Zuza Homem de Mello, d'"O Estado de São Paulo", produtor do programa de maior audiência da Jovem Pan e que o conhece desde quando Gillespie esteve no Brasil, com sua orquestra, contratado pela TV Tupi. Diretor dos últimos quatro eventos jazzísticos internacionais aqui realizados - os dois Jazz-Montreux, em São Paulo (1978/1980), o Rio Monterrey Jazz Festival (1981), o Free Jazz Festival (Rio, agosto/85) e, agora, responsável pelas promoções paralelas ao próximo Free Jazz Festival (Rio/São Paulo, agosto/86), Zuza veio aplaudir Gillespie em sua apresentação em Curitiba. Foi um reencontro emotivo, no qual Gillespie lembrou de Zuza em seus encontros no Brasil e em Nova Iorque enquanto seu empresário dizia que ainda está no portfólio do artista, a crítica que Zuza fez do show de estréia da banda de Gillespie, em 7 de agosto de 1956. "Foi a primeira crítica de jazz que fiz", comenta Zuza, ex-presidente da Associação de Pesquisadores da MPB, eclético em suas pesquisas musicais, e que veio a Curitiba para, amanhã à tarde, integrar o júri que selecionará a criança que representará o Brasil na Grande Gala de Pequenos Cantores, em Figueira de Foz, Portugal, dentro de um mês. Pela terceira vez, a promoção no Brasil deste evento é da Criart, dirigida pela animadora cultural Marília Bernardes.
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Elisabeth Reichmann, atenciosa manager da temporada de Gillespie no Brasil (que neste final de semana se apresenta no Rio de Janeiro), enfrentou alguns problemas de última hora: sua mala foi extraviada no aeroporto, teve que solucionar aborrecimentos técnicos de última hora mas, no final, satisfeita com os aplausos do público, garantia que Tony Bennett - o grande cantor americano, herdeiro de Sinatra - estará no Guaíra, na primeira semana de junho e, em setembro, possivelmente, Miles Davis, nome lendário do jazz - que desta vez, em sua tournée latino-americana, incluirá também apresentações fora do eixo Rio-São Paulo.
Entretanto, a temporada de Airto Moreira, catarinense-paranaense, ao lado de Flora Purim - sua esposa, corre o risco de não ter apresentações em Curitiba, embora esta seja a cidade em que Airto viveu e na qual residem seus parentes. Motivo: a semana em que Airto e Flora programaram para o Brasil (em agosto) está com as datas do Guaíra bloqueadas com mais uma monótona e repetitiva edição do Festival folclórico. Não existe outro espaço amplo, com dignidade para receber o espetáculo que Airto e Flora têm levado a quase todo o mundo. Será irônico que para aplaudir estes dois grandes artistas, seus amigos e fãs tenham que ir a São Paulo ou Porto Alegre, onde já houve preocupação dos dirigentes dos teatros em guardarem boas datas.
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Com ingressos a Cz$ 300,00 (Cz$ 250,00 no 1º balcão e Cz$ 150,00 no segundo), pode-se dizer que houve um público razoável para o concerto de Dizzy Gillespie. Espetáculo contratado em dólares, preço fixo, é naturalmente caro, mas comparando-se ao que mediocridades (de Roberto Carlos a Richard Claydermann) costumam pedir por seus shows-pastiches, quem realmente aprecia a grande música - criativa e eterna - e desejava ver um nome lendário, possivelmente ao lado de Art Blakey (68 anos) e John Lewis (67 anos), o último dos grandes da velha escola jazzística, sentiu-se gratificado pelos momentos que ofereceu no Guaíra, em promoção devida única e exclusivamente ao empresário Manoel Poladiam, já que de parte da Secretaria de Cultura e Esportes - medíocre, incompetente e paquidérmica - jamais se veria concertos desta dimensão.
Ainda bem que há produtores de espetáculos que se lembram da existência de Curitiba - independente do caos cultural aqui implantado há três anos pelo infeliz governo José Richa.
LEGENDA FOTO - Gillespie, bom humor e genialidade no palco. Um espetáculo histórico visto quinta-feira em Curitiba.
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