"Ilha das Flores", o sôco na consciência dos espectadores
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 21 de junho de 1989
Comparar o impacto que "Ilha das Flores" causou ao ter a sua primeira exibição pública, na noite de quinta-feira, 15, no Cine Embaixador, em Gramado, aquele que a apresentação de "Cidadão Kane", de Orson Welles motivou há quase 50 anos, é exagero. Mas não há dúvida de que raras vezes um curta-metragem trouxe tanto entusiasmo junto ao público e à crítica, quanto este curta do gaúcho Jorge Furtado, que, merecidamente, ficou com nada menos que nove Kikitos na 17ª edição do Festival do Cinema Brasileiro de Gramado.
A sinopse de "Ilha das Flores", nada dizia, colocando apenas uma série de perguntas: "Qual a produção mundial de tomates? Como se mede um segundo? Qual a verdadeira queda do Império Romano? Como se fabricam perfumes?", etc.
Assim, nem mesmo os mais próximos colaboradores de Jorge Furtado e de seus associados na Casa de Cinema - uma espécie de cooperativa que reúne quatro produtoras gaúchas - sabiam dizer exatamente do que o filme tratava. Ana Maria Azevedo, que com ele realizou "Barbosa" (curta também premiado em Gramado, no ano passado), dizia, imodestamente:
- "É difícil explicar o filme de uma forma linear".
Realmente, o impacto está na forma com que Furtado construiu o roteiro e, especialmente, na montagem de Giba Assis Brasil. Numa criação dialética - na qual seu realizador não esconde uma clara influência marxista - o filme expõe um raciocínio sobre os meios de produção capitalista, com relação a alimentação: a trajetória de um tomate que, por estar estragado, não serve a quem o comprou, é desprezado para alimentação dos porcos mas é disputado pelos que buscam comida nos depósitos de lixo da "Ilha das Flores" - uma das três ilhas (as outras duas são dos Marinheiros e do Pavão) que, no Rio Guaíba, são usadas para depósitos de lixo - e na qual há criações de porcos (alimentados com lixo). Ali, milhares de pessoas buscam também alimentos.
Longe de ficar num documentário formal e esquerdizante, Furtado construiu um filme originalíssimo e que em 90% de suas seqüências provoca o riso. Um bom humor inteligentemente desenvolvido através de imagens fixas (num trabalho de pesquisa, com material iconográfico de diferentes origens) e animadas, que ganhou a perfeição com a montagem precisa de Assis Brasil. O público ri bastante, acompanha o desenvolvimento dialético com que Jorge Furtado mostra as relações entre o capital e o trabalho, mas que, no final, atinge o público com imagens das mais fortes: seres humanos buscando um tomate que nem para alimentar os porcos serviu.
"Ilha das Flores" é como a sensação de acariciar e provocar cócegas no corpo de uma pessoa e, de repente, quando este está com todas as defesas naturais abertas, lhe aplicar um violento soco nos órgãos genitais. É um grito de dor e horror no final - pela verdade que traz em suas imagens. Assim, não há ninguém capaz de resistir ao impacto que este curta provoca. Claro que há os que podem discordar da forma narrativa e mesmo do fato de fazer uma abordagem de um drama tão terrível de nossa realidade utilizando o humor. Entretanto, ninguém pode negar a inteligência, a competência e criatividade com que o filme foi desenvolvido.
Na sexta-feira, no debate sobre o seu filme, Jorge Furtado, com uma extrema humildade, dizia que trabalhou de forma a passar algumas idéias, desenvolvendo o roteiro com dados que buscou no Guinnes e Enciclopédia Abril - para fazer as colocações que recheiam de informações o seu filme - valorizado pela narração do ator Paulo José, gaúcho mas há anos radicado no Rio de Janeiro - e com belíssima trilha sonora de Geraldo Flach.
Vindo de experiências bem sucedidas - estreou com "Tormenta" e com José Pedro Goulart, fez o também premiadíssimo "O Dia em que Dorival Enfrentou a Guarda", que teve 8 Kikitos em 1986, e, no ano passado, com Ana Luiza Azevedo, "Barbosa", Jorge Furtado, 35 anos, recebeu não só aplausos, mas também propostas para compra de seu curta e convites para dirigir um longa-metragem. Só que ao contrário de todos os seus colegas que fazem curtas, já com o roteiro do primeiro longa em andamento, ele confessa que não tem, no momento, nenhum projeto para chegar ao longa. Talvez por preferir auxiliar o seu amigo Pedro Goulart na realização de seu primeiro longa, "O Jardim do Diabo", baseado num texto de Luís Fernando Veríssimo - e com filmagens previstas para o próximo ano.
LEGENDA FOTO - Com imagens inusitadas - como o porco, em cena - o gaúcho Jorge Furtado fez o filme mais interessante apresentado em Gramado: o curta "Ilha das Flores", premiado com 9 Kikitos.
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