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Aramis

As imagens que desmistificam a nossa Capital da Esperança

"O filme de Vladimir é um tiro de obuz na mira das meias-verdades alicerçadas com o correr dos anos da ditadura. Com preciosas imagens arquivadas ao longo de quase 20 anos, tempo de gestação desta verdadeira ópera popular, além de depoimentos revistos e checados com o passar dos anos. Vladimir entrega agora ao público uma obra que não tem preço, um dos mais lúcidos espelhos da nossa realidade já construídos pelo cinema nacional". (César Mendes, "Correio Braziliense", 16/10/1990) xxx Foi unânime. Não houve quem discordasse! "Conterrâneos Velhos de Guerra" foi o filme-impacto do XXIII Festival do Cinema Brasileiro de Brasília (10 a 16 de outubro), no qual participou na categoria 16mm. Levou os prêmios da crítica - melhor filme - o troféu "Jornal de Brasília" e mais os "Candangos" de melhor filme e direção na categoria. Se tivesse concorrido em 35mm seria o grande vitorioso. Apesar da atualidade e coragem de "Césio 137", de Roberto Pires - sobre o acidente da contaminação nuclear em Goiânia, há três anos - o documentário de Vladimir de Carvalho sacudiu a todos - como há três anos passados aconteceu com outro documentário em longa-metragem, também 16mm, "Terra para Rose" e, no ano passado, com o contundente "Que Bom te ver Viva", de Lúcia Murat - apresentados em Brasília. Assim como Tetê de Moraes fez com seu "Terra para Rose", ampliando-o para 35mm, Vladimir quer também passar para esta bitola o seu documentário. Sabe que não será fácil: para concluir as duas únicas cópias que dispõe - uma segunda, legendada em espanhol, seguirá para o Festival do Cinema Livre de Havana, na próxima semana - precisa conseguir recursos. Há 20 anos que ele vem tirando dinheiro de seus magros proventos de professor da Universidade Federal de Brasília e, nos últimos meses, para finalizar "Conterrâneos..." vendeu seu único patrimônio, um apartamento de 2 quartos e sala - morando agora em imóvel alugado. Quem conhece Vladimir de Carvalho, paraibano de Itabaiana, próximo aos 56 anos - a serem completados no próximo 31 de janeiro, aprendeu a admirá-lo como documentarista - ocupando hoje, com razão, a posição do mais importante realizador neste gênero. Foi como assistente do histórico Linduarte Noronha 60 anos, pioneiro do cinema na Paraíba com seu "Arruanda", 1959/60, que Vladimir teve seus primeiros contatos com o cinema. Integrou depois a equipe que iria realizar "Cabra Marcado Para Morrer" de Eduardo Coutinho, em produção do Centro Popular de Cultura da UNE, iniciado em 1963 e abortado com o golpe militar de 1º de abril de 1964. Para não ser preso, Vladimir passou algum tempo em Salvador, ali convivendo com uma geração emergente - Caetano Veloso, então crítico de cinema de "A Tarde"; Roberto Pires, Glauber Rocha, Orlando Senna e tantos outros talentos da boa terra. No Rio de Janeiro, Vladimir foi assistente de Arnaldo Jabor nos documentários "Rio, Capital Mundial do Cinema" - sobre os bastidores do Festival Internacional de Cinema e do contundente "Opinião Pública". Como jornalista, trabalhou no "Diário de Notícias". Em Brasília, ao participar do II Festival de Cinema Brasileiro, há 21 anos, se integrou com Paulo Emílio Salles Gomes e outros professores e cineastas que ali implantavam um avançado curso de cinema que o levariam, no ano seguinte a se fixar naquela cidade. Começava a gênese, então, do grande projeto, só agora concluído: a mais extensa documentação filmada de Brasília, desde os tempos das primeiras construções, num total de 56 anos - "material suficiente para uma série de filmes", e como explica - e do qual "Conterrâneos..." é apenas um exemplo. xxx Foi assistindo um festival que Vladimir sentiu que "o documentário era a forma de fazer filmes que eu procurava conforme nos dizia, há 10 dias, no Kubitschek Plaza, em Brasília. - "especialmente "O Homem de Aran", de Robert Flaherty e, depois, os documentários de Dziga Vertov e Joris Ivens despertaram o meu lado de documentarista. Anos depois, na Europa, Vladimir conhecia Joris Ivens (1898-1989), de quem se tornou amigo e cujo livro de memórias, "Memórias de um Olhar", está tentando conseguir a edição através da Universidade de Brasília. Com raro vigor e profunda sinceridade - como acentuou o crítico José Carlos Monteiro - Vladimir Carvalho conseguiu realizar ao longo dos últimos 20 anos, inspirados documentários político-antropológicos sobre a candente e complexa realidade sócio-econômica de sua terra - o Nordeste. Diz Monteiro que "Exaltada pela crítica mais engajada e festejada pelo público inequivocamente o elevou à condição de o mais íntegro e combativo precursor da geração de documentaristas". Do Lírico "A Boiandeira" (1968) ao pragmático "A Pedra da Riqueza" (1976), passando pelos reminiscentes "Incelência para um Trem de Ferro" (1972) e "O Espírito Criador do Povo Brasileiro" (1973), Vladimir traçou um exuberante painel das transformações culturais da região onde nasceu há 55 anos. Em Brasília, fez documentários notáveis como "Vestibular-70", incisiva reportagem sobre a guerra por uma vaga na Universidade e "Itinerário para Niemeyer" (1975), crônica em 16mm em branco-e-preto sobre a arquitetura do grande mestre. "O País de São Saruê" - ampliação de "O Sertão do Rio do Peixe", cuja gestação começou em fins dos anos 60 - foi seu primeiro longa, mas que pela força das imagens assustou a Censura, proibindo-a por 8 anos. Dois documentários biográficos de políticos nordestinos - "O Homem de Areia", 1983, sobre o escritor e político paraibano José Américo de Almeida (1887-1980) e "O Evangelho Segundo Teotônio", no qual acompanhou o final de vida do senador alagoano Teotônio Vilela (1917-1984), foram outros momentos importantíssimos de sua carreira de garimpeiro de imagens do real. Mas o projeto mais carinhosamente desenvolvido, que levou 20 anos para ser concluído, é "Conterrâneos Velhos de Guerra". Visto até agora apenas em duas sessões na pequena (90 lugares) sala Alberto Nepomuceno do Teatro Nacional, mas que, se depender da sua vontade, será mostrada em todo o País. Embora basicamente sobre Brasília, este documentário de 165 minutos traz tamanha força em suas imagens, ao mostrar o outro lado da "Capital da Esperança" - sonhada por Juscelino mas que, se transformou em "Capital da Angústia", como diz, lucidamente, o ex-senador Pompeu de Souza, um dos muitos depoentes neste filme - que se encerra com imagens inéditas do "Badernaço" de novembro de 1986, quando indignados com o Plano Cruzado anunciado, em forma de pacote econômico, após as eleições, centenas de brasileiros foram as ruas e, especialmente defronte a Rodoviária, incendiariam veículos, lojas, boxes, numa manifestação impressionante de raiva popular, e cuja divulgação foi proibida, com todas as imagens colhidas na televisão. Do material que dois câmeras ali fizeram - um deles o paranaense Ronaldo Duque (autor do premiado curta "Postura, Cretã"), Vladimir fez o fecho de seu filme, com imagens em fogo e uma advertência apocalíptica sobre os problemas sociais cada vez maiores que fazem de Brasília, longe da Corte Oficial, uma cidade que, 30 anos após ser inaugurada, apresenta em maior intensidade - justamente por ter "departamentalizado" a miséria urbana - uma das cidades mais explosivas do país. LEGENDA FOTO 1 - Vladimir de Carvalho, segundo à esquerda (ao lado do irmão, o fotógrafo Walter) durante as filmagens de "Conterrâneos Velhos de Guerra". (Foto de César Mendes Faria). LEGENDA FOTO 2 - Imagens emocionantes, mostrando os nordestinos e suas famílias expulsos do sonho de Brasília, fazem "Conterrâneos Velhos de Guerra" um filme atualíssimo e que deveria ser trazido a Curitiba... Se aqui houvesse alguma instituição preocupada em mostrar o cinema do real. LEGENDA FOTO 3 - Mostrando o outro lado da moeda, com material reunido ao longo dos 20 anos. Carvalho fez um documentário básico sobre os problemas de uma cidade. "Conterrâneos Velhos de Guerra" participará do próximo Festival do Cinema de Havana com chances de receber o Grand Coral. Uma das seqüências mais impressionantes é sobre a remoção de nordestinos de uma favela no Plano Piloto - para beneficiar grupos especulativos da construção civil.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
28/10/1990

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